quinta-feira, 31 de outubro de 2024

DIA MUNDIAL DAS CIDADES

 

Rio de Janeiro-RJ, vista parcial do Centro e cúpula do Theatro Municipal (2017)

Este Dia Mundial das Cidades, diante de tantas delas arrasadas por catástrofes climáticas, guerras, bombardeios, conflitos sociais, devastação, falta de saneamento, poluição da água, solo e ar, além de deslocamentos forçados, é um momento oportuno para se refletir. Em 2024, o foco das Nações Unidas, que tem à frente a brasileira Anacláudia Rossbach como nova diretora executiva da ONU-Habitat,  são os jovens e a necessidade de os governos organizarem debates em busca de soluções sustentáveis para lidar com as mudanças climáticas. Segundo a ONU, até 2030, 60% da população viverão em áreas urbanas e seis em cada 10 moradores terão menos de 18 anos.

 Se olharmos as cidades como organismos vivos, veremos que elas necessitam de cuidados desde seu planejamento, da urbanização adotada, das prioridades estabelecidas. Deve-se levar em conta que ruas, prédios, muros e praças não são apenas concreto, asfalto, pedra. São também elementos que atuam sobre a percepção e o comportamento dos moradores de um centro urbano. A configuração da cidade - como são projetados e utilizados os equipamentos urbanos, se há saneamento básico, transporte, escolas e postos de saúde, áreas de lazer, vias de circulação, como se dá a ocupação e a dinâmica dos espaços, se unem ou separam pessoas - interfere na vida pessoal, na trajetória de cada indivíduo.

 As cidades, historicamente segmentadas, com a escalada das práticas neoliberais, do capitalismo transnacional, da economia calcada em valores abstratos, foram sendo redesenhadas. O espaço urbano tornou-se mercadoria disputadíssima, gerando impactos drásticos sobre a questão da moradia. Como afirma a arquiteta e urbanista Raquel Rolnik, trata-se “não apenas de uma nova política habitacional, mas de um complexo urbanístico, imobiliário e financeiro com impactos profundos no redesenho das cidades e na vida dos cidadãos”. Vemos surgir um novo termo: gentrificação .

 Muitas são as demandas nas metrópoles, especialmente nas dos países emergentes onde as desigualdades são mais explícitas. Ainda que cada demanda deva ser avaliada individualmente, um olhar abrangente sobre todas elas é fundamental. Se, por exemplo, mães não têm uma gravidez saudável, sem acesso a alimentação adequada, a informação quanto a hábitos de higiene e cuidados consigo e com o bebê e acompanhamento médico, há grandes chances de gerarem filhos com problemas de saúde. Daí, dificuldades de aprendizado, evasão escolar, baixa ou nenhuma qualificação profissional, percepção limitada do mundo e da vida em sociedade e de suas próprias capacidades.

 O sociólogo e pesquisador Marcelo Burgos afirma que o modo como as cidades são configuradas vai contribuir ou não para a construção de uma “cultura cívica orientada para a ampliação da participação social e política na vida citadina”. Cidades são, assim, cenários onde vão se construindo identidades, produzindo subjetividades e orientando a relação com o outro, com o Estado.

 Olhar os problemas das cidades de modo orgânico, indo às suas raízes, focando nas causas e não nas consequências, e criando cidades dignas para pessoas saudáveis, produtivas, criativas, solidárias é um conceito defendido não apenas por alguns urbanistas e arquitetos. Na década de 1960, a jornalista Jane Jacobs causou grande impacto com seu livro “Morte e vida de grandes cidades”. Jacobs faz uma conexão entre a arquitetura urbana e a necessidade de comunicação entre os indivíduos. A autora enfatiza que espaços públicos e prédios devem acolher uma diversidade de usos e que as ruas devem ser ocupadas pelas pessoas. Segundo Jacobs, “as cidades vivas têm uma estupenda capacidade natural de compreender, comunicar, planejar e inventar o que for necessário para enfrentar as dificuldades”. Numa época de mudanças climáticas com gravíssimos impactos sobre as populações e o ambiente como um todo, esta percepção torna-se crucial.

O projeto “Cidade para pessoas", criado pelo arquiteto dinamarquês Jan Gehl, vai ao encontro do pensamento de Jacobs. Ele articula a arquitetura com a psicologia e a sociologia, já tendo sido chamado de “filósofo das cidades”, e propõe a construção de cidades compactas, favorecendo a mobilidade urbana. Gehl entende, por exemplo, que o uso irracional dos carros nas cidades, gerando dezenas de quilômetros de trânsito, não é a causa, mas um sintoma de mau planejamento urbano. Para Gehl, “embora os problemas das cidades não sejam todos iguais nas várias partes do mundo e em diferentes níveis de desenvolvimento econômico, são mínimas as diferenças envolvidas na inclusão da dimensão humana no planejamento urbano.”

 A participação popular nas decisões sobre as prioridades de uma comunidade, em todos os seus âmbitos, traz outros olhares e a experiência de quem vivencia cotidianamente as vantagens e dificuldades do que a cidade oferece a seus habitantes. Certamente, esta participação terá maior qualidade e eficácia se os habitantes tiverem acesso à educação qualificada e a meios de informação confiáveis e diversificados. E se sintam “donos” da sua cidade, no sentido do direito a ela, de usufruí-la, e no sentido de serem co-responsáveis por sua manutenção como espaço democrático e saudável, preservando o meio ambiente, os espaços públicos.

 Gehl defende que “todos os grupos sociais, independentemente da idade, renda, status, religião ou etnia, possam se encontrar nesses espaços ao se deslocarem para suas atividades diárias” e as diferentes atividades devem se complementar e não competir por espaço, assegurando a todos o direito de se expressar e a liberdade para atividades alternativas. Para ele, não se trata apenas de uma postura mais humana, mais justa, mas também a mais sensata, com benefícios para todos.


Águas de Lindóia-SP (2015)

Jane Jacobs entende as verbas públicas como instrumento de recuperação permanente, planejada, “passando de um instrumento que financia alterações drásticas a um instrumento que financia mudanças contínuas, graduais, complexas e mais suaves”. Ao expor suas críticas a modelos de cidades que não priorizam a convivência, Jane Jacobs não as está condenando, ao contrário. A autora critica o sentimentalismo em relação à natureza, em oposição à vida na urbe, afirmando que “as grandes cidades e as zonas rurais podem conviver muito bem” e que, mesmo com muitos problemas, as cidades não são “vítimas passivas de uma sucessão de circunstâncias, assim como não são a contrapartida maléfica da natureza”.

 Como já afirmou o Secretário Geral das Nações Unidas, António Guterres, em 2021, estamos, rapidamente, aproximando-nos de um ponto sem retorno para o planeta. Torna-se, então, urgente repensar conceitos como “desenvolvimento” e “progresso”. Novos parâmetros deveriam ser levados em conta ao se avaliar a qualidade de vida dos cidadãos e o sucesso de uma administração pública. É preciso ir além dos números do PIB (Produto Interno Bruto), priorizando outros índices, como o IDH (Índice de Desenvolvimento Humano), diante da necessidade de lançar sobre as cidades e seus habitantes um olhar mais acurado e, especialmente, que mire além de números e estatísticas.

Referências:

- ONU marca Dia Mundial das Cidades focando em jovens e ação climática | ONU News

- Brasileira assume ONU-Habitat e defende que planejamento urbano é chave na solução de crises globais | ONU News

- Dia Mundial do Meio Ambiente 2021: mensagem do secretário-geral da ONU | As Nações Unidas no Brasil

- BURGOS, Marcelo Baumann. Cidade, Territórios e Cidadania. In: Dados - Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, Vol. 48, no 1, 2005, pp.189 a 222

- GEHL, Jan. Cidades para pessoas. Ed. Perspectiva, 2013

- JACOBS, Jane. Morte e vida de grandes cidades. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011

- ROLNIK, Raquel. Guerra dos lugares: a colonização da terra e da moradia na era das finanças. São Paulo: Boitempo, 2015



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