segunda-feira, 24 de junho de 2013

INCLUSÃO, CONSUMO E CIDADANIA: UNINDO PONTAS SOLTAS (2)



Em seu livro "Consumidores e Cidadãos", Néstor Garcia Canclini vê no consumo novas possibilidades de se exercer a cidadania. Segundo o autor, com a degradação da política e a descrença em suas instituições, as regras abstratas da democracia que antes preencheriam as lacunas deixadas pelas diferenças sociais perderam terreno para outras formas de participação na sociedade. Um modo de participação se manifesta pelo ato de consumir bens pessoais e se baliza pelos meios de comunicação de massa.

Não se trata, contudo, de um louvor ao consumismo. A proposição de Canclini é mais abrangente: ele faz uma análise crítica sobre o papel de consumidor e de cidadão, afirmando que “as sociedades se reorganizam para fazer-nos consumidores do século XXI e, como cidadãos, levar-nos de volta para o século XVIII”. A posição de Boaventura Sousa Santos, analisando a greve geral que irrompeu na Europa em 2011, de certa forma vem ao encontro dessa afirmação do teórico argentino. Segundo Boaventura Santos, tal greve “é mais defensiva que ofensiva, visa menos promover um avanço civilizacional do que impedir um retrocesso civilizacional”. Ou seja, no momento histórico que atravessamos, mais do que crescer, avançar, é necessário garantir direitos e padrões de cidadania já conquistados.

Voltando-se para as novas tecnologias, Canclini acredita que, mais do que as revoluções sociais, ou o estudo das culturas populares ou ainda algumas expressões alternativas na política e na arte, as tecnologias audiovisuais de comunicação funcionaram como um motor de propulsão para o desenvolvimento do público e exercício da cidadania. O autor faz aqui ressalvas, observando a existência de um retraimento na presença do cidadão nos espaços públicos.   
 
O teórico argentino afirma que “estes meios eletrônicos que fizeram irromper as massas populares na esfera pública foram deslocando o desempenho da cidadania em direção às práticas de consumo”. Decorridos alguns anos desde a publicação do livro, é animador ver que os cidadãos estão cada vez mais ocupando os espaços públicos, como demonstram as últimas manifestações no Brasil e no exterior.

Ao analisar a trajetória do cidadão como consumidor, o autor vê sua passagem da condição de “representante de uma opinião pública ao cidadão interessado em desfrutar de uma certa qualidade de vida”. Um indicador desta troca de papéis seria, segundo ele, o fato de que as formas argumentativas e críticas são substituídas pela mera fruição de espetáculos nos meios eletrônicos, fugazes e esvaziados de reflexão.

Canclini destaca ainda que, a partir da segunda metade do século XX, as modalidades audiovisuais e massivas (rádio/TV) de organização cultural vão se subordinando a esquemas empresariais, cujo principal objetivo é o lucro. Ao reivindicar uma mídia livre, mais investimentos em educação e cultura, ao se propor a ser participativa e não apenas espectadora, a sociedade vai também revertendo essa situação observada por Canclini. E já vai contabilizando algumas vitórias.


O teórico argentino afirma que “a conjunção das tendências desreguladoras e privatizantes, com a concentração transnacional das empresas, diminuiu as vozes públicas, tanto na ‘alta-cultura’ como na popular” e que o resultado de tal concentração de poder sobre a esfera cultural nas mãos de uma “elite tecnológico-econômica” irá gerar um “novo regime de exclusão das maiorias incorporadas como clientes”. Ou seja, as maiorias, na verdade, equivalem a minorias quando se trata de ter representatividade.

Que as vozes das ruas se tornem cada vez mais fortes, conscientes, para que os “clientes” sejam também autores, protagonistas, construtores de uma sociedade onde prevaleça a justiça, a fraternidade, a harmonia.       


terça-feira, 18 de junho de 2013

INCLUSÃO, CONSUMO E CIDADANIA: UNINDO PONTAS SOLTAS (1)



Assumindo que a exclusão não se liga apenas ao fator econômico, ainda que este seja um aspecto fundamental, podemos dizer que não é exclusivamente pelo consumo que se combate a exclusão social. Em vista disso, quando se pensa em igualdade, cidadania, direitos, inclusão, não basta, por exemplo, invocar a ascensão de milhares de brasileiros de uma classe social para outra, como tem sido amplamente noticiado pela mídia e divulgado pelos órgãos governamentais nos últimos anos. As pesquisas indicam que a classe média cresceu e está consumindo mais[1], mas entendemos que não é o suficiente aumentar o poder compra dos indivíduos se nesta cesta de produtos não costumam estar bens culturais diversificados. Incluir não significa apenas dar acesso ao consumo – ainda que este seja também um modo de inclusão, como defende Nestor García Canclini (1997) -, pois este não é suficiente para promover a igualdade social plena. Como observa o sociólogo Octavio Ianni, “a mesma sociedade que fabrica a prosperidade econômica fabrica as desigualdades que constituem a questão social” (Ianni, apud Fernandes, 2010, p.36).


A exclusão persiste se o que se dá a essa nova classe média são produtos de segunda categoria, sejam os bens de consumo, sejam os bens culturais, ou produtos de cultura de massa mascarados de cultura popular. Segundo Stuart Hall, a cultura popular quando é mercantilizada e estereotipada (como acontece com frequência), não constitui “a arena onde descobrimos quem realmente somos, a verdade de nossa experiência. Ela é uma arena profundamente mítica. É um teatro de desejos populares, um teatro de fantasias populares”. (Hall, 2003, p.348). Deste modo, aqueles indivíduos não estarão realmente incluídos se não lhes são conferidas as mesmas oportunidades de escolha e a capacidade de avaliar criticamente o que lhes é oferecido.


Na lógica capitalista, a atribuição de valor aos bens e produtos segue parâmetros arbitrários, altamente variáveis, criando um ambiente de instabilidade e insegurança[2]. O que hoje vale muito, amanhã pode ser inútil. Jürgen Habermas, já na década de 1960, entendia que as leis de mercado se infiltram na substância das obras. Segundo ele, essas leis extrapolam a publicidade, a apresentação da embalagem, de modo que a criação das obras “se orienta, nos setores amplos da cultura de consumo, conforme os pontos de vista da estratégia de vendas no mercado” (Habermas, apud Rüdiger, 2008, p.139). O panorama contemporâneo revela o quanto “o capitalismo rompeu os limites da economia e penetrou no campo da formação da consciência, convertendo os bens culturais em mercadoria” (Rüdiger, 2008, p.139). Exemplos disso são os filmes que ocupam a maioria das salas de cinema, onde prevalece um tipo de produto nitidamente focado no lucro financeiro e preocupado mais com o mercado do que com a arte, a criatividade, a diversidade, a reflexão. São obras que vêm acompanhados por maciça propaganda, tendo seus custos aumentados exponencialmente devido às verbas destinadas à publicidade do próprio filme e de uma série de produtos que vêm na esteira de seu lançamento nas salas de cinema.


          Edgard Morin (2009) também observa uma estreita relação entre a cultura de massa e o capital, já que aquela supervaloriza o consumo ligado às promessas de lazer como fuga do cotidiano, de juventude permanente, de felicidade instantânea. Para Morin, são como mercadorias ou bônus que ganhamos ao comprarmos este ou aquele produto, havendo uma projeção do sujeito em figuras mitológicas: é o homem sobre-humano envolvido pelo sentimento de “olimpianismo”.



[1] Consumo da classe C cresce sete vezes desde 2002. Matéria de 17/12/10, disponível em:

http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2010/12/101217_classec_consumo_jf.shtml - acesso em 17/03/2011. O filme Família Braz – Dois Tempos (Arthur Fontes e Dorrit Harazim) é um retrato desse crescimento e das escolhas que são feitas ao se consumir.




[2] Em 2008, a quebra do banco de investimentos Lehman Brothers desencadeou uma grave crise econômica que teve reflexos em várias economias mundiais. http://noticias.r7.com/economia/noticias/relembre-o-comeco-da-crise-economica-de-2008-ha-3-anos-banco-lehman-brothers-quebrou-20110915.html - acesso em 25/10/11. Em 2011 nova crise afeta vários países, inclusive alguns cuja economia era considerada sólida (como Irlanda, Itália e França) e em Nova York (EUA) protestos levaram milhares de pessoas a ocupar Wall Street (ver movimento Occupy Wall Street - http://occupywallst.org/) – acesso em 15/10/11

sábado, 8 de junho de 2013

GIMME SOME TRUTH



No cinema 2 da Caixa Cultural a tela exibe “Estados Unidos x Lennon”. A sala está quase lotada, gente de toda idade. Fãs, curiosos, quem ama os Beatles, quem ouviu falar, quem está ali por acaso...

No outro extremo do mesmo piso, a Mostra “World Press Photo” exibe os horrores da guerra na Síria. E, em meio a algumas belezas e curiosidades, outros horrores também.

O filme desfia a trajetória do Beatle mais rebelde, esmiuçando as ligações que o tornaram persona non grata nos EUA. A atualidade da história que vemos se desenrolar diante de nossos olhos é impressionante. Naquele final dos anos 60 e começo dos 70 eu, e acredito que muitos outros, não tinha conhecimento da dimensão dos protestos que agitavam a América. Não me recordo bem... em 1970 eu havia concluído o que hoje é o ensino médio (ou 2º grau... mudam os nomes e o ensino só piora)  e tivera de parar os estudos, para trabalhar. Não convivia num ambiente onde se conversasse sobre política, a situação do país... enfim, vivia alienada. Sob a forte censura da ditadura militar, a imprensa não trazia muita informação.

Os Beatles, juntos ou separados, eram então “apenas” caras geniais, reunidos por uma maravilhosa conspiração dos astros, que revolucionaram a música e com tal qualidade que suas obras estão aí até hoje, com o mesmo vigor. Mas o garoto rebelde de Liverpool, rejeitado pelo pai e, de certa forma, também pela mãe, criado pela tia Mimi, queria mais do que dinheiro, fama e prestígio com sua arte.

Olhado por vezes apenas como um astro excêntrico, ou um louco, ou um drogado, ou um sonhador, em suas falas John Lennon revela uma lucidez inquestionável. O garoto que desde criança tinha um único desejo, tocar numa banda de rock, sentiu que tinha de ir além dos palcos e estúdios de gravação. Assim, subiu em palanques, uniu-se aos Black Panthers, protestou em versos e cartazes contra a guerra do Vietnã, enfim, incomodou o FBI, Nixon, Hoover e todo um stablishment. Sempre pacificamente, inspirado por Ghandi e Martin Luther King.

Ironicamente ao empreender uma batalha jurídica contra a Imigração para permanecer nos EUA, estava lutando para ficar na cidade onde, alguns anos mais tarde, seria assassinado.

As imagens permanecem na mente, as músicas ecoam nos ouvidos, enquanto deixo a sala de cinema, olhos marejados, coração maior do que o peito. A garota que amava os Beatles é hoje uma senhora que ainda os ama, de um jeito mais profundo, mais cúmplice. Como queria ter vivido mais de perto, mais intensamente, aqueles acontecimentos!
Aida, foto de Rodrigo Abd

A foto vencedora do prêmio “World Press Photo 2013” se escancara na minha frente. Os conflitos se multiplicam, a mídia mente ou induz ao erro, a publicidade toma conta de todos os espaços, nos entorpece, o excesso nos distrai.

Give peace a chance, gimme some truth... continuamos pedindo paz para o mundo, queremos a verdade, mas parece que hoje nossas vozes, curiosamente, ainda que facilitadas por tanta tecnologia, não são tão potentes como há algumas décadas.