domingo, 25 de setembro de 2022

ÁGUA: DIREITO HUMANO AMEÇADO (2)

Ainda que estejam no rol dos Direitos Humanos desde 2010, conforme resolução da ONU, o acesso à água limpa e os serviços de saneamento básico ainda são desconhecidos por milhões de pessoas em todo mundo, inclusive por boa parte dos brasileiros. Números do portal do SNIS batem com os do estudo do Instituto Trata Brasil e revelam que cerca de 35 milhões de brasileiros ainda vivem sem água tratada e 100 milhões não são atendidos pela coleta de esgoto. 

Sancionado em 2020 pela Lei 14.026, o Novo Marco Legal do Saneamento não foi capaz de reverter este quadro. Os bilionários investimentos no setor não foram suficientes para atingir as metas da legislação. Os dados constam da 14ª edição do Ranking do Saneamento, publicado pelo Instituto Trata Brasil, que avaliou os 100 maiores municípios brasileiros. Cidades dos estados do Sul e Sudeste ocupam as primeiras posições do ranking, lideradas por Santos (SP). Entre os 20 piores estão municípios da região Norte, alguns do Nordeste e Rio de Janeiro.

O Plano Nacional do Saneamento Básico, de 2007, trouxe avanços, mas a Lei que o criou já sofreu inúmeras alterações. Houve redução nos investimentos na área e o Novo Marco do Saneamento facilitou a privatização dos serviços prestados pelo setor. Pela nova lei, empresas públicas não poderão ser contratadas diretamente, devendo disputar uma licitação com empresas privadas. Outra perda, foi o veto do Presidente da República ao artigo que permitia a extensão dos contratos atuais com as empresas públicas por mais 30 anos.



No Estado do Rio, o leilão de blocos da Cedae, empresa pública responsável pelos serviços de água e esgoto, foi levado adiante apesar de várias contestações e protestos. Em recente
seminário promovido pelo Instituto Onda Azul, o presidente da Cedae, Leonardo Soares, alegou que a empresa não foi privatizada, mas é parte de um “quebra-cabeças” destinado a viabilizar a prestação dos serviços de água e esgoto à população, prejudicados por falta de recursos. A Cedae faz a captação e o tratamento e as concessionárias se encarregam da distribuição. Segundo Soares, a empresa está recuperando os prejuízos dos anos anteriores e irá ampliar os serviços.

Por outro lado, durante a Semana do Meio Ambiente, realizada pelo Fórum de Ciência e Cultura da UFRJ, em junho, Ana Lucia Brito, professora do PROURB/UFRJ e coordenadora do Laboratório de Estudos de Águas Urbanas, destacou que o leilão de blocos da CEDAE foi uma contrapartida relativa a um empréstimo feito pelo governo estadual no exterior e foi realizado sem um debate público prévio. A pesquisadora ressaltou a falta de representatividade da população na Câmara Metropolitana, uma vez que muitos municípios do estado não têm assento no órgão e ficam sujeitos às decisões daqueles que lá têm participação.

 

A empresa vencedora da licitação, Águas do Rio, informa em seu site que é “concessionária da Aegea, líder no setor privado de saneamento básico no Brasil, é responsável pelo abastecimento de água e esgotamento sanitário em 27 municípios do Estado do Rio de Janeiro, incluindo 124 bairros da capital, atendendo 10 milhões de pessoas.” Informa ainda que, considerando o início da concessão, novembro de 2021, a companhia realizará “o maior investimento em saneamento básico no país, em torno de R$ 39 bilhões” e que a universalização dos serviços de água e esgoto será alcançada nos primeiros 12 anos. Contudo, quase um ano depois da concessão, são frequentes na mídia as reclamações dos usuários quanto à má qualidade dos serviços, tanto prestados pela Cedae quanto pela empresa Águas do Rio. Muitas vezes as contas chegam, mas a água não.

 

Suyá Quintslr, professora do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (IPPUR/UFRJ), vê uma contradição entre as privatizações e o discurso que promete reduzir desigualdades. Em entrevista ao jornal Brasil de Fato, quando da aprovação pelo Senado do PL 4162 que criou o Marco do Saneamento, em julho de 2020, a pesquisadora destacou a “tendência amplamente documentada dos operadores privados optarem por investir nos serviços nas áreas nas quais eles são lucrativos, deixando as redes e infraestruturas das áreas habitadas pela população com reduzida capacidade de pagamento se degradarem". Na mesma ocasião, o engenheiro e coordenador do Observatório dos Direitos à Água e ao Saneamento (Ondas), Marcos Montenegro, afirmou que o projeto “vem embalado por uma campanha que destaca as mazelas, mas não conseguiu fazer um diagnóstico das causas dos problemas que nós vivemos”

 

Num processo inverso às privatizações, nos últimos anos, mais de 300 cidades em diferentes países reestatizaram seus serviços de tratamento de água e esgoto, conforme aponta um estudo do Transnational Institute, um centro de pesquisas sediado na Holanda. Entre elas, Paris, Berlim, Turim, Buenos Aires e La Paz. Sobre essas remunicipalizações, Suya Quintslr destacou que elas ocorreram por diferentes motivos, mas sempre com foco no interesse público. No caso da criação da Eau de Paris, por exemplo, a intenção foi assegurar que os recursos recebidos seriam reinvestidos por uma empresa pública e não apropriados por uma empresa privada. Já na América Latina, as cidades de Cochabamba e Buenos Aires passaram por processos mais conturbados. Na cidade boliviana, a reestatização ocorreu após grande mobilização popular, a Guerra da Água, que contestava os aumentos de tarifa e as restrições impostas ao acesso até mesmo a fontes de água bruta. Os cidadãos da capital argentina também tiveram o fornecimento de água remunicipalizado após a concessionária privada descumprir cláusulas do contrato e promover aumentos de tarifa, ocasionando transtornos e prejuízos à população.

 

A pesquisadora chamou a atenção para o fato de que há diferentes maneiras de a inciativa privada participar do fornecimento de serviços essenciais, como o saneamento. Citou como exemplo a Sabesp, companhia estadual que lançou suas ações na bolsa, mas manteve o Governo do Estado de São Paulo como principal acionista e controlador. Lembrou também as PPPs, ou parcerias público-privadas, como a adotada em Recife. No caso da Cedae, o modelo adotado é a concessão dos serviços de água e esgotos para uma companhia privada e, neste tipo de contrato, ela considera que deveria haver uma regulação forte por parte do Estado.

Foto: https://blog.brkambiental.com.br/relacao-entre-saude-e-saneamento/

 

domingo, 4 de setembro de 2022

ÁGUA : DIREITO HUMANO AMEAÇADO (1)

 Desde 2010 o acesso à água limpa e segura e ao serviço de saneamento básico fazem parte dos Direitos Humanos, reconhecidos como tal por resolução da ONU, de 28/07/10.   Até então, o direito à água era entendido como necessidade humana básica. A resolução da ONU coloca em outro patamar e dá maior visibilidade a um tema fundamental, levando o assunto para além das discussões de urbanistas e ambientalistas.

 Alguns países, como Equador (2008) e Bolívia (2009), foram mais longe e, antes mesmo da ação da ONU, estenderam o direito à água a outros entes, como a própria Natureza e a Mãe Terra, fazendo-o constar em suas respectivas Constituições. A Constituição Brasileira de 1988 estabelece alguns direitos sociais, como saúde, educação, moradia e outros, mas não faz menção à água e saneamento especificamente. 

Salto Barão do Rio Branco - Prudentópolis-PR - set.2021

Conforme números de 2020 do portal do SNIS, 84,1% da população brasileira têm acesso à água encanada, já o acesso a saneamento básico não passa de 55% e apenas metade deste volume é de esgoto tratado. E o desperdício é imenso: cerca de 40% do volume de água tratada se perdem durante o abastecimento, e não é de hoje. Em matéria no site Vozerio, de 2015, o professor Paulo Canedo, da Coppe/UFRJ, já alertava sobre essas perdas.

 No século 20, segundo dados da Unesco, o consumo de água no planeta aumentou seis vezes, duas vezes mais do que a população. Fatores como crescimento da atividade industrial e especialmente do agronegócio contribuíram para esse salto. O recente Relatório mundial das Nações Unidas sobre desenvolvimento dos recursos hídricos 2021 aponta que “a agricultura é responsável por 69% das retiradas de água em âmbito mundial, que é usada principalmente para irrigação, mas também inclui a água para rebanhos bovinos e aquicultura. Essa proporção pode chegar a 95% em alguns países em desenvolvimento”, como é o caso do Brasil. Contudo, prossegue o Relatório, a agricultura é responsável por apenas cerca de 4% do Produto Interno Bruto (PIB) mundial, indicando que “o valor agregado do uso da água na agricultura é muito baixo”. O relatório informa ainda que a indústria – incluindo o uso e a geração de energia – é responsável por 19% do uso da água.

 Em 2019 a Agência Nacional de Águas (ANA) publicou o Manual de Usos Consuntivos da Água no Brasil no qual prevê que o consumo de água no país deve crescer 24% até 2030. Já um estudo do Instituto Trata Brasil mostra que o Novo Marco Legal do Saneamento, aprovado em 2020, não teve efeito significativo sobre o acesso da população à água potável ou aos serviços básicos de saneamento. Considerando-se um universo de 215 milhões de habitantes e os percentuais apontados pelo SNIS, os brasileiros que ainda vivem sem água tratada somam 35 milhões e outros 100 milhões não são atendidos pela coleta de esgoto. 

A pandemia de Covid, que circula pelo planeta desde 2020, expôs de modo contundente como este direito fundamental não é respeitado em muitos países, especialmente nos mais pobres. Relatório do Unicef, de outubro de 2020, apontou que apenas três em cada cinco pessoas em todo o mundo têm instalações básicas para a lavagem das mãos e que três bilhões de pessoas, ou 40% da população mundial, não têm lavatórios com água e sabão em casa. O Estado do Rio reflete esta triste estatística: durante a Semana do Meio Ambiente, realizada pela UFRJ em junho último, Guilherme Pimentel, Ouvidor Geral da Defensoria Pública do Estado do Rio, relatou que, durante a pandemia, uma das demandas que o órgão mais recebeu foi sobre a falta de água nas residências e a impossibilidade de manter os cuidados preventivos mínimos contra a doença.

Painel Exposição H2O, ArteSesc Rio, 2009

Se nas áreas urbanas de metrópoles como o Rio de Janeiro o acesso à água limpa é deficiente, no Norte e Nordeste do país a situação é grave, especialmente no semiárido.  O programa de construção de cisternas foi fortemente afetado pelo corte de verbas nos últimos anos e, segundo a rede ASA Brasil (Articulação Semiárido Brasileiro), 350 mil famílias não têm sequer água para beber, dependendo dos caminhões-pipa. De tecnologia simples e eficiência reconhecida pelo Fundo das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação (FAO), as cisternas do semiárido vinham possibilitando às populações daquela região não apenas o acesso à água para consumo próprio, mas permitindo a agricultura, a criação de animais, de modo sustentável e gerando emprego e renda. 

Políticas públicas pensadas em conjunto com a sociedade civil, incluindo informação e educação de qualidade, ensino de técnicas de tecnologia social, aproveitamento de recursos locais, qualificação de mão de obra, devem ser pontos fundamentais em qualquer plano de governo - seja nacional, estadual ou municipal – que esteja verdadeiramente engajado na preservação e restauração do meio ambiente e, por conseguinte, no respeito à natureza, no cuidado com a saúde e dignidade de seu povo.