quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

Sala escura: O FIM DA ESCURIDÃO

TIROS E MÚSCULOS + NEURÔNIOS E ÉTICA

Comecei a escrever estes comentários antes de ler sobre a série que deu origem ao longa. Mas vejo que minhas impressões estavam certas. “Edge of Darkness” (que a meu ver ficaria mais bem traduzido por Fronteira da Escuridão) tem uma trajetória respeitável e há muito mais no filme do que pancadaria e sede de vingança.

Os fãs dos filmes de ação não terão do que reclamar. O cardápio tem lutas corporais, perseguições, muitos tiros e muito sangue. Mas o filme de Martin Campbell não se resume a isso. Tem também ameaça terrorista, armas nucleares, ecologia. O roteiro (de Andrew Bovell e William Monahan) muito bem estruturado prende o espectador nas quase duas horas de projeção. E Mel Gibson (que envelhece com dignidade e charme) encarna com profunda sinceridade o pai amargurado e enfurecido pelo assassinato de sua única filha, uma jovem engenheira nuclear.

A trama da premiada minissérie britânica exibida na TV em 1985 (ambientada na Inglaterra e em tempos de Guerra Fria) foi habilmente transportada para Boston (Massachusetts) neste começo de século XXI, onde mais do que nunca, nem tudo é o que parece. Por um momento tem-se a impressão de que a história vai esculhambar o politicamente correto ao criticar a organização ambientalista Nightflower (uma Greenpeace fictícia), mas na verdade Campbell não toma partido, ele detona todo mundo, desenrolando um intrincado novelo de corrupção capaz de fazer corar nossos senadores. Sobra a ética que deveria reger políticos, policiais, ambientalistas, cidadãos enfim.

Destaque para Jay Winstone em atuação contida mas marcante, como o misterioso Jedburgh, um, digamos, especialista em confundir opinião pública e imprensa. Como dizem eles, o importante é criar várias versões de modo que cada um tenha a sua e ninguém chegue à verdade. Lembrei-me em algum momento da Nikita (versão original francesa, de Luc Besson, 1990, não o remake americano), não por semelhanças entre as personagens das jovens, mas pela apropriação por parte do Estado de métodos que as leis por ele mesmo concebidas condenam. Tudo é questão de conveniência. E uma palavra pode responder a todas as perguntas: Confidencial (classified).

Mais de uma vez o detetive Craven (Gibson) questiona os colegas que garantem uma investigação a fundo por envolver um policial (“officer envolved”), no caso o pai da vítima. E ele pergunta: não deveriam todas as investigações ser assim? Pergunta que cabe bem na realidade do Rio de Janeiro com sua guerra particular.

A delicada relação de amor entre pai e filha e a percepção de que às vezes se conhece alguém melhor depois de sua morte, dão ao filme uma sutileza docemente amarga. A expressão “sangue do meu sangue” é convertida em imagens, sem apelar para o dramalhão fácil. Gibson veste a couraça do policial durão que busca justiça, mas sob ela sobressai a pele do pai amoroso e do cidadão que acredita em valores já meio desbotados nessa época em que aparências importam mais do que a verdade.


O FIM DA ESCURIDÃO (Edge of Darkness)
Martin Campbell, Reino Unido/EUA, 2010
Duração: 1h48 – Classificação: 14 anos
Trailer em:
http://www.imagemfilmes.com.br/imagemfilmes/principal/filme.aspx?filme=103102

DOWNLOAD DE DOCUMENTÁRIOS


Recebo e-mail do documentarista Guillermo Planel comunicando que está disponibilizando seus filmes “Abaixando a Máquina” e “Imagens do Jongo” para download, gratuitamente.
Segundo ele, os filmes estão sendo vendidos pela internet, através de sites de Torrents, para pagamento com cartão de crédito, de forma não autorizada. Sendo assim, Guillermo e seus parceiros decidiram colocar os filmes, originais e legendados, no eMule. Quem não tem o programa, é só baixá-lo e procurar pelo nome dos filmes, fazendo a seguir o download. Ele avisa ainda que “por enquanto não se corre o risco de ter algum vírus junto, pois os arquivos estão disponíveis diretamente do meu computador. Futuramente talvez, mas nada que um antivírus residente não resolva”.

Abaixando a máquina: Ética e Dor no Fotojornalismo (Guillermo Planel e Renato de Paula, 2008, 65min) é um comovente documentário, já exibido em festivais no Brasil e no exterior, que mostra a difícil missão de fotógrafos de jornais cariocas para recolher imagens numa cidade onde a violência é cotidiana. E revela que atrás de cada lente, há um ser humano comprometido com a ética e que também sofre para levar informação confiável à sociedade. Na foto, a face de dor de uma mãe clicada por Marcos Tristão.

Imagens do Jongo (direção de Planel, argumento de Domingos Peixoto, 2009) é um delicado registro dessa manifestação com dança e música da cultura africana que permanece, resiste, no quilombo de São José da Serra, na região de Valença, sul do Estado do Rio de Janeiro. Foto de Severino Silva.

Bonito gesto de generosidade dos realizadores dos dois filmes.

segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

Sala Escura: AVATAR


EU QUERO IR PRA PANDORA

O filme de James Cameron, que está lotando boa parte das salas no Brasil, chega como a obra que inaugura outro jeito de fazer cinema. E o que mais se tem falado sobre ele tem a ver com a tecnologia que transforma o assistir ao filme numa viagem.

Como já disse a crítica, AVATAR traz uma história pra lá de conhecida – o jovem guerreiro que muda de lado ao se apaixonar e ao conhecer as reais intenções e métodos de seus superiores– mas traduzida em imagens que casam com uma palavra: deslumbramento.

Acredito que Cameron, com esse épico, marca sim a história do cinema (esse senhor que já passou dos 100 anos, mas sempre renovado). O que de modo algum significa que seu cinema seja melhor do que o dos grandes diretores, como Martin Scorsese, os irmãos Coen, Federico Fellini, Clint Eastwood, Walter Salles, entre tantos outros, mais ou menos incensados e premiados. O mérito maior de Cameron é usar os espertíssimos efeitos visuais não para escamotear a precariedade ou obviedade do roteiro – que de fato não é exatamente um primor – mas para que transmitam o sentido de sua história banal. Banal mas necessária, como o ar e a água.

O próprio diretor já declarou que foi divertido ver as pessoas comentando o filme, antes mesmo do lançamento, mas se deu conta de que falavam apenas do superficial. Ele espera que, ao verem o filme, as pessoas percebam que há muito mais para se falar. A tecnologia a serviço da criatividade e da emoção é uma fórmula que tem contribuído para que o cinema se consolide como a sétima arte, desde o surgimento de câmeras mais leves que deixaram o tripé e foram para as mãos, dando mobilidade aos cineastas. Junte-se aí a animação e a computação gráfica.

Exageros e estereótipos à parte – como um comandante de frios olhos azuis, mau como um pica-pau – Cameron cria uma história (que provavelmente terá continuidade com Avatar 2, 3...) que remete à conquista das Américas, ao massacre de povos cujo poder não está no aparato bélico, mas na sabedoria ancestral e na conexão com elementos da natureza. Seu povo Na’vi tem traços de índios norte-americanos, com suas longas tranças; suas cavalgadas nos lembram antigos westerns. A heroína Neytiri tem um quê da Pocahontas de “O Novo Mundo”, de Terrence Malick.

AVATAR fala da destruição da memória (“abrir um buraco na memória deles”, diz o malvado), e o diretor sabe do que está falando. Memória, onde se ancora a força de qualquer povo e por isso é o alvo dos conquistadores, usem eles armas de fogo ou estratégias publicitárias e mercadológicas.

Memória. Talvez seja este – ainda que não percebido por grande parte do público – o grande lance de AVATAR. Memória para nos conectar com o homem que é parte de um sistema onde tudo está integrado. Definitivamente, eu, que tenho a “minha” árvore-mãe no Parque do Flamengo, voltarei à sala 3D do Arteplex Botafogo para, da poltrona, mergulhar na deslumbrante floresta de Pandora.


AVATAR (Avatar)
Direção: James Cameron
EUA, 2009 – duração: 2h48 – 12 anos

domingo, 17 de janeiro de 2010

FILHOS DO BRASIL, FILHOS DO MUNDO (II)

E volto ao Haiti, de onde chegam relatos e imagens que superam a ficção, qualquer filme-catástrofe. A destruição que mais me agride não é a dos prédios, é a da própria espécie humana. Não falo do físico, mas da essência humana. Vemos seres que, pelo descaso secular, pela ignorância, pela total falta de direção, de conhecimento, de instrução, de amor, de amparo, de perspectiva, de segurança, se embrutecem, tornam-se feras.


O bem e o mal estão em toda parte: gente que cria e une, gente que destrói e separa; gente que ama e doa, gente que inveja, odeia e explora o outro. No meio do caos, de saques, estupros, mãos generosas, de estrangeiros e dos próprios haitianos, tentam salvar pessoas, tentam salvar nossa humanidade.


Em 2006 os diretores Caito Ortiz e João Dornelas lançaram um documentário sobre o jogo amistoso da seleção brasileira com um time local, no Haiti, em 2004. O filme, como costuma acontecer com os lançamentos nacionais, ficou pouco tempo em cartaz, não teve grande destaque na mídia, pouca gente viu. Nele, além de registrar a euforia com os campeões do mundo, havia espaço para reflexão, para análise crítica do acontecimento no contexto da situação do país caribenho.



A revista Brasileiros (excelente) traz matéria e fotos do repórter Victor Ferreira, que esteve no Haiti a convite de uma comitiva do Ministério da Defesa brasileiro. A edição é a de agosto/2009, mas algumas passagens parecem de agora. Ele conta:



Consegui escapar das atividades oficiais e ir ver de perto a vida em Cité Soleil. [...] A viagem começou, de verdade, nesse momento. [...] Dos oito militares, sete tinham um fuzil nas mãos. Eu também tinha o meu – a máquina fotográfica. Ainda no caminho para Cité Soleil, descobri que ela podia machucar mais que um fuzil de verdade. Decidi, então, só fotografar quem pedisse ou permitisse”.
“O esgoto reinava insolente em grandes valetas a céu aberto, correndo ao lado das ruas, ora asfaltadas, ora de terra com pedregulhos – o que restou de casas e muros destruídos. Em uma avenida ocupada pelo comércio informal, a grande atividade econômica do Haiti, via-se muitos buracos no chão e nas paredes das residências, resultado da guerra entre gangues e exércitos paramilitares”.




Ele fala da visita ao Centro de Nutrição e Saúde mantido por irmãs de caridade e que acolhe crianças: “Irmã Dulcimar (uma brasileira, nordestina, que vive lá há oito anos) conta que muitas mães ali não sabem sequer quem é o pai de seus filhos. São mulheres, às vezes meninas, que tiveram seus filhos entre 14 e 20 anos. A maioria fruto de abuso sexual. ‘Elas não têm culpa, nunca quiseram o bebê. Então nós temos de ensinar tudo. Até a amar a criança’”.


Dulcimar vivia em Cité Solei quando o presidente Jean-Bertrand Aristide foi deposto, em 2004, havendo então a intervenção externa da ONU. Ela conta ao repórter que “antes era dia e noite aquele barulho de tiro. De manhã, sempre tinha gente morta pelas ruas. Hoje melhorou bastante”. E diz ao jornalista que o Brasil é o grande responsável pela mudança. O país é o que mais contribuiu com a força-tarefa da ONU para estabilizar o Haiti.

Será que a irmã Dulcimar sobreviveu? Será que aquelas jovens mães chegaram a aprender a amar seus filhos? Ou estão todos sob os escombros?

FILHOS DO BRASIL, FILHOS DO MUNDO (I)


Assisti no dia 13, numa sala meio vazia (ou meio cheia), ao filme do Fábio Barreto, “Lula, o filho do Brasil”, baseado no livro de Denise Paraná. Tendo lido várias coisas a respeito, contra e a favor, e fazendo um balanço, destaco comentários do jornalista do Recife, Urariano Mota, divulgados na lista Cinemabrasil:

“Essa é uma obra que a gente vê com algumas idéias prévias, porque nunca, na história, se falou tão mal de um filme. Nos jornais, na tevê, nas revistas, antes da estréia o filme que não conhecíamos era propaganda eleitoral, vigarice, com uso desonesto da máquina pública. Hoje, nos jornais, o filme mudou para a categoria de obra medíocre, indigna de ser vista. [...]. Sabemos todos quanto os meios de comunicação prezam a inteligência e sensibilidade humana”.

“Os olhos mais críticos já fizeram a justa observação de que o filme é desprovido de ritmo ou tensão dramática. Ou seja, nele não há um conflito básico [...]. Nem mesmo, o que seria propaganda pura, mas dentro da "gloriosa" tradição de Hollywood, o herói sozinho contra o resto do mundo, o self-made-man típico, que se faz só”.

“[...] Os recursos com que a literatura conta não sobrevivem na cirurgia da montagem. Pior, a escolha nem sempre é a mais sensível, onde cortar, onde avultar, onde crescer. Lula, o personagem, sabemos todos, é maior que o PT, é bem maior que o sindicalismo, porque ele vem com a força da história, como uma encarnação da força que o povo tem. Dos muitos severinos, joões, marias e lindus".
Concordo. Não temos um filme primoroso, daqueles que deixam a gente meio que suspensa no ar ao sairmos do cinema. Nos primeiros 30 minutos achei até meio fragmentado demais, sem ritmo, como páginas de um livro que fossem sendo filmadas, sem uma costura adequada à transposição ao cinema. O que não quer dizer que as imagens não sejam de grande qualidade, esteticamente é um belo filme. Mas, gradativamente, ele passa a fluir melhor. E o que importa mesmo é saber que o que vemos na tela é o Brasil, um Brasil que nem sempre consegue mostrar sua cara. E saber onde aquele moleque chegou, com seus erros e acertos. E mais, pensar em quantos “lulas” enfrentam as mesmas privações, carências, violências. E aí está o diferencial desse Lula: dona Lindu. Lula inegavelmente tem seu mérito, mas ele não teria chegado lá sem a sabedoria de sua mãe, de poucas mas precisas palavras. Acredito que não há mãe que não se emocione com dona Lindu.

Enquanto escrevia este texto, veio o soco na boca do estômago, as imagens do Haiti. E me peguei pensando nos quantos “lulas” que existem (ou existiam) também lá, na miséria que há séculos domina aquele pequeno país, para o qual o mundo agora volta os olhos, porque a destruição foi tal que é impossível ignorar. E penso na médica Zilda Arns, fundadora da Pastoral da Criança, morta no terremoto. E volto à dona Lindu. Se tivesse tido acesso aos estudos, quem sabe não seria ela uma colega da Dra. Zilda?

E o pensamento vai fluindo, vagando pelos migrantes que deixam sua terra, pela brutalidade fruto da ignorância, pelas pessoas que, de tanto teimar (como ensina d.Lindu), conseguem alcançar seu objetivo. E de como a arte - no caso, o cinema – pode ter um papel fundamental: além de entreter e informar, ele pode nos lembrar de nossa própria realidade, frequentemente sufocada sob o ruído das buzinas, dos toques do celular, de tantos sons e imagens com que nos bombardeiam diariamente.