quinta-feira, 3 de dezembro de 2015

ONDE DESÁGUAM OS RIOS?



No mapa do mundo globalizado e regido pelo mercado, em algum ponto as águas barrentas do Rio Doce talvez se encontrem com as águas manchadas de sangue do Rio Sena. O Brasil exporta toneladas de minério de ferro extraído das montanhas das Gerais. Seu maior comprador é a China. A China fabrica armas. Não sei o quanto do minério importado pelos chineses vai para sua indústria bélica, mas, considerando o poderoso e rentável comércio (legal e ilegal) de armas, é bem provável que muitas toneladas tenham este destino.

Itabirito-MG
As armas dos terroristas do EI – ou de qualquer outra facção, qualquer guerra – certamente têm variadas procedências. No caso do EI, muitas delas, talvez a maioria, são adquiridas com o dinheiro que o EI ganha com a venda de petróleo (aliás, quem compra o petróleo do EI?). Outras tantas virão de saques, combates, apoiadores da causa (?)...

Claro que isto não é uma investigação jornalística, mas apenas uma reflexão alimentada pelo que se tem falado sobre os acontecimentos que invadem nosso cotidiano. A TV Brasil, por exemplo, tem produzido excelentes programas de entrevista e debates essenciais para o público realmente interessado em se informar. Algumas matérias veiculadas pela internet também ajudam a pensar e, se não compreender (será que é possível compreender tanta insanidade?), pelo menos a enxergar com mais clareza - sem a turbidez das postagens sem-noção ou dos arautos do caos e da ignorância arrogante que infestam as redes sociais - o contexto que envolve guerras, ataques terroristas e vazamentos de barragens.

Mesmo que as armas dos assassinos de Paris não tenham na sua composição uma única molécula do minério de nossas Minas Gerais, o que esta reflexão propõe é a urgência de um olhar mais abrangente – como tantos outros vêm propondo – sobre as desgraças diárias que nos assaltam, sejam nas ruas do Rio de Janeiro ou Damasco, nos cafés parisienses ou nos mercados de Bagdá. Seja a violência urbana que mata como uma guerra “oficial” (em poderio bélico e em número de mortos), seja esta Terceira Guerra Mundial, fragmentada e multiplicada, que há tempos vem cavando na face de nosso planeta crateras onde se sepultam vidas de toda espécie, cidades, monumentos, histórias individuais e coletivas.
Minas de Potosi - Bolívia

A produção das mineradoras aumentou exponencialmente, graças ao avanço da tecnologia que cria máquinas capazes de extrair num dia mais do que centenas de trabalhadores escravizados retiravam em meses de trabalho braçal. Tal voracidade com a qual se avança sobre as jazidas é alimentada pela lógica do desenvolvimento sem fim, do crescer e crescer, do produzir e produzir, do consumir e consumir. Mais e mais. Uma lógica que coloca sob holofotes alguns aspectos – geração de empregos, produção de bens de consumo para o bem estar da sociedade – mas convenientemente joga na sombra o custo ambiental, humano, social deste modelo de crescimento que não conhece limites. Urge encontrar um ponto de equilíbrio ou banir o que estiver fazendo pender a balança do custo x benefício para o lado do prejuízo humano. Evidentemente, tais ações demandam planejamento, responsabilidade e a participação de técnicos e da população envolvida. Quando a meta é o bem comum – o bem possível, se a utopia não é alcançável – e não o interesse pessoal, a ganância e a vaidade, achar soluções para os problemas, em qualquer âmbito, fica mais fácil.

Pensar que armas ou munição usadas num ataque terrorista – praticado por um grupo assim assumido ou por forças institucionais que também agem como terroristas – podem ter em seu DNA o minério saído do coração do Brasil pode parecer delírio. Mas, como tudo está no cinema, lembro do filme Babel e daquele tiro disparado por um garoto nas áridas montanhas do Marrocos que encontra o peito de uma turista norte-americana. Histórias que se cruzam e onde o improvável se mostra possível. E o mercado de armas, e toda a teia que o alimenta, também já foi protagonista na tela grande, encarnado em Nicholas Cage.

Encerro com Zygmunt Bauman, alertando que “o crescimento econômico (tal como descrito nas estatísticas do PIB e identificado com montantes crescentes de dinheiro mudando de mãos) não pressagia, para a maioria de nós, a chegada de um futuro melhor”. E, rebatendo a “teoria do gotejamento” (segundo a qual o enriquecimento de uma categoria favoreceria as classes inferiores a ela), o sociólogo polonês afirma:

Para todos os fins e propósitos práticos, essa política desvincula seu direito à riqueza de qualquer benefício que eles possam gerar ou não para aqueles cujo bem-estar supostamente devem promover – em vez de induzir, aumentar e menos ainda garantir um aumento da produção da riqueza pública. O propósito genuíno da política é garantir privilégios, não os atrelar à utilidade pública.”

Links relacionados/leituras sugeridas:



Mariana e a mercantilização do meio ambiente


Mineração e o jogo dos sete erros.

A mineração não é um bom negócio


Endless Economic Growth is Fundamentally Unsustainable

Atentado de Paris: 13 perguntas e 24 reflexões

BAUMAN, Zygmunt. A riqueza de poucos beneficia todos nós? Rio de Janeiro: Zahar, 2015

E um pouco de poesia, Drummond, vigilante:

TV BRASIL:
- O Observatório da Imprensa analisa a cobertura realizada pela mídia do desastre ambiental em Mariana

 

- Brasilianas.org debate a configuração geopolítica pós-atentados em Paris


BABEL (Babel)- Direção: Alejandro González Iñárritu - França/USA/México, 2006

O SENHOR DAS ARMAS (Lord of War) – Direção: Andrew Niccol - USA/Alemanha/França, 2005

FOTOS:

Minas de Potosí, onde milhares de índios eram submetidos a intermináveis horas de trabalho escravo. http://internacional.estadao.com.br/blogs/ariel-palacios/bispos-governadores-e-piratas-na-controvertida-primeira-operacao-export-import-argentina-brasil/


Itabirito-MG - Mineradora Vale é autuada por trabalho escravo (março/2015):
 
 

domingo, 8 de novembro de 2015

ERA UMA VEZ NO SUDESTE


Em 1968 Sergio Leone marcou um gol de placa (um deles) na história do cinema ao lançar Era uma vez no Oeste, uma obra-prima que rende homenagem aos filmes de faroeste. Com fotografia que por vezes lembra uma pintura renascentista, o longa reúne todos os clichês do gênero: homens barbudos, sujos e malvados, locomotiva fumegante, cobiça, vingança, duelo ao sol e Colt 45. Some-se ainda música e sonoplastia primorosas, mais o auxílio luxuoso de uma Claudia Cardinale exuberante e os incrivelmente azuis olhos de Henry Fonda, mais frios do que nunca. E tem mais: o brutamontes mais doce do cinema, Charles Bronson, capaz de acertar um alvo com precisão de campeão olímpico.

 
Av. Rio Branco, domingo, 01/11/15
Os trilhos do VLT avançando pela cidade olímpica parecem uma versão pós-moderna da saga dos desbravadores do Oeste. Vá lá que em vez de carroças e rochas esculpidas pelo vento temos prédios e um trânsito de tirar a paciência do mais zen dos motoristas. Mas estão lá os buracos, poeira, homens trabalhando e, principalmente, a aura de progresso, aquilo diante do que qualquer sacrifício – seja de moradores removidos, seja do patrimônio histórico, ou do meio ambiente – se justifica. E, junto com este conceito de desenvolvimento, o charme do cosmopolitismo e, é claro, o brilho do ouro que reluz nas grandes obras, não mais em barras, mas sob a forma de reais, dólares ou euros.



Trocando os figurinos e cenários, temos uma história atual. No filme de Leone, as terras de Sweetwater, desprezadas por todos, ganham subitamente um valor inimaginável, graças à chegada dos trilhos que trazem junto, além da estação de trem, a oportunidade de negócios, de se ganhar dinheiro. É o que hoje chamaríamos de gentrificação, uma palavrinha (ou palavrão?) que vai se tornando familiar para quem acompanha as mudanças no cenário urbano. Aquele metro quadrado que não valia nada pode, de repente, ser valorizado ao extremo e, por isso, ser disputado avidamente por investidores, seja para construírem saloons, prédios de escritórios ou estacionamentos.



Interessante que, sob pedra e asfalto, os operários do VLT encontraram trilhos dos antigos bondes que cruzaram a cidade e até o calçamento pé de moleque, de fins do século XVIII. Arqueólogos, historiadores e defensores da memória e da cultura clamam por sua preservação; as escavadeiras avançam. São camadas e camadas de História, sobrepostas, num faz-desfaz-faz de novo. Como dizia Marx (o barbudo vermelho, não o paisagista tupiniquim), tudo que é sólido se desmancha no ar. Ou sob as máquinas do progresso.



Daqui a uns 200 anos, as obras do Rio Olímpico talvez sejam olhadas como olhamos hoje a conquista do Oeste. E no lugar dos trilhos do VLT poderá haver uma cidade de ficção científica ou uma empoeirada viela de terra. Vai saber?



Mirando num futuro mais próximo, vemos o VLT chegando triunfal à Av. Rio Branco, onde será recebido com festa, muitos discursos, fotos. Nosso alcaide “desbravador”, cercado de autoridades de diversos quilates, ostentará no rosto o sorriso dos vencedores. E é irresistível imaginar o Prefeito, o Governador, o Presidente do Comitê Olímpico ou qualquer outra autoridade com aquelas capas compridas, na (antológica) sequência inicial de Era uma vez..., atentos à chegada do trem. Pena que Charles Bronson não estará nele.



Aqui você vê o trailer de Era uma vez no oeste: https://www.youtube.com/watch?v=MNGQ1hUyx-k#t=33