quinta-feira, 2 de maio de 2019

CRÔNICAS DO CARAÇA (3) – Ele, o Lobo-Guará



A partir das 19h os hóspedes e visitantes começam a se reunir no adro da igreja à espera do Lobo-Guará. A bandeja com a comida já está lá. Câmeras preparadas. Olhos e ouvidos atentos.



Depois de uma espera que pareceu interminável por causa da ansiedade, o dono da noite chegou. Era por volta de 21h. Coração batendo forte, vislumbrei as orelhinhas pontudas subindo por num cantinho da escada. E ele enfim se mostrou, com toda sua beleza e elegância.  O coração acelerou e as lágrimas desceram.  Um choro pelo sonho realizado, pela beleza daquele momento, pela generosidade da natureza, por gratidão aos que preservam esta maravilha.  




Além de nosso grupo e outros hóspedes, havia uma turma de franceses que, aliás, espocavam seus flashes a curta distância do lobo, o que, confesso, me incomodou. Posicionado estrategicamente, estava também um fotógrafo/cinegrafista, com suas lentes de frente para a escada por onde chega o lobo-guará. Conversei depois com ele, curiosa para saber se estavam fazendo um documentário. É um fotógrafo de natureza, profissional, e viaja por aquela região dando aulas a alunos que o contratam. Bateu uma inveja. 



Segundo os monitores, o lobo que nos visitou é o pai de uma família que costumava vir reunida, quando os filhotes eram pequenos. Hoje, o filho já toma o lugar de liderança do pai, chegam a brigar, e às vezes aparece com a mãe. A irmã não apareceu mais. O senhor lobo comeu, voltou para a mata, reapareceu, ficou um longo tempo devorando as carcaças – o barulho do mastigar os ossos impressiona – sem se importar com os flashes.

  

Os monitores nos contam que os cachorros do mato, quando em bando, atacam o lobo. Vimos alguns rondando o jardim em frente à escadaria, mas neste dia não subiram. Provavelmente por isso, o lobo-guará fica o tempo todo atento à escadaria que dá acesso ao adro.

O Lobo-Guará sempre atento à escada de acesso ao adro.

Este lobo provavelmente é o neto daquele primeiro que foi se chegando, atraído pelo padre Lauro, há mais de trinta anos. Grupos que iam passar o dia na RPPN faziam churrasco e deixavam restos nas lixeiras, próximas à igreja. O padre percebeu que lobos começaram a ser atraídos por esses restos e resolveu fazer aproximação com eles. Pouco a pouco, foi ganhando a confiança dos animais que passaram a frequentar o adro da igreja para o jantar. A foto abaixo, exposta na recepção do Santuário, registra um momento de belíssima união entre homem e lobo. Respeito, confiança.


Nos dias em que estivemos lá, infelizmente, os padres estavam fora, ou de férias ou em tratamento de saúde. O padre Lauro, nos contam os monitores, tem mais intimidade com o lobo e o chama pelo nome, "guará", "guarazinho"... Para atraí-los, os monitores batem no tabuleiro, alertando que o jantar está servido. 

Este contato do padre do Santuário com o lobo-guará é uma versão do que os cientistas acreditam aconteceu há mais de 30 mil anos, quando os primeiros lobos se aproximaram de nossos ancestrais. Tal como o lobo-guará do Caraça, eles também se aproximavam dos acampamentos para comer os restos e, com o tempo, foram se acostumando à presença e ao convívio com humanos. Criaram vínculos, homem e lobo passaram a cooperar, a se proteger mutuamente. Os lobos selvagens foram se modificando e os cachorros que conhecemos hoje seriam seus descendentes. 



O bonitão foi embora, mas difícil baixar a adrenalina para dormir. Rolava um jogo do Flamengo na sala de TV (só há uma no Caraça) e fiquei por lá com alguns companheiros ainda por um tempo. Fui dormir, já bem tarde, em estado de graça. Noite sublime esta!


Nas noites seguintes, novamente a espera, mas o lobo não apareceu. Talvez tenha vindo de madrugada. Esperei até depois de meia-noite, com alguns poucos “valentes”. Eu me revezava, ora na porta que dá para o adro, ora espiando da janela do meu quarto, tentando adivinhar as orelhinhas pontudas na escuridão. O lobo é capaz de percorrer muitos quilômetros e às vezes não aparece por estar muito distante do local de seu banquete, o adro da igreja. Quando caminhamos de dia pela mata não os vemos, mas é o reino deles que percorremos.



Na terceira noite, sozinha com o monitor – todos os outros já haviam desistido de esperar – vi um cachorrinho do mato mais ousado chegar até a bandeja. Um susto! Muito rápido, nem deu para fotografar.
 
Alguns resistem bravamente e esperam o lobo-guará quando os outros hóspedes já desistiram.
Nos dois dias seguintes, aproveitamos outras maravilhas do Caraça, contudo o lobo-guará faltou a nosso encontro noturno. Mas eu já estava irremediavelmente apaixonada. Pensamento fixo nele, já preocupada se estaria com fome, machucado, na chuva. Lobo-Guará, você agora faz parte da minha vida. A lua cheia é testemunha.

 

Links interessantes: 

https://pt.wikipedia.org/wiki/Lobo-guar%C3%A1






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