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Rio de Janeiro-RJ, vista parcial do Centro e cúpula do Theatro Municipal (2017) |
Este Dia Mundial das Cidades, diante de tantas
delas arrasadas por catástrofes climáticas, guerras, bombardeios, conflitos
sociais, devastação, falta de saneamento, poluição da água, solo e ar, além de deslocamentos
forçados, é um momento oportuno para se refletir. Em 2024, o foco das Nações
Unidas, que tem à frente a brasileira Anacláudia Rossbach como nova diretora
executiva da ONU-Habitat, são os jovens
e a necessidade de os governos organizarem debates em busca de soluções
sustentáveis para lidar com as mudanças climáticas. Segundo a ONU, até 2030,
60% da população viverão em áreas urbanas e seis em cada 10 moradores terão
menos de 18 anos.
Se olharmos as cidades como organismos
vivos, veremos que elas necessitam de cuidados desde seu planejamento, da
urbanização adotada, das prioridades estabelecidas. Deve-se levar em conta que ruas,
prédios, muros e praças não são apenas concreto, asfalto, pedra. São também
elementos que atuam sobre a percepção e o comportamento dos moradores de um
centro urbano. A configuração da cidade - como são projetados e utilizados os
equipamentos urbanos, se há saneamento básico, transporte, escolas e postos de
saúde, áreas de lazer, vias de circulação, como se dá a ocupação e a dinâmica
dos espaços, se unem ou separam pessoas - interfere na vida pessoal, na
trajetória de cada indivíduo.
As cidades, historicamente segmentadas,
com a escalada das práticas neoliberais, do capitalismo transnacional, da
economia calcada em valores abstratos, foram sendo redesenhadas. O espaço
urbano tornou-se mercadoria disputadíssima, gerando impactos drásticos sobre a
questão da moradia. Como afirma a arquiteta e urbanista Raquel Rolnik, trata-se
“não apenas de uma nova política habitacional, mas de um complexo urbanístico, imobiliário
e financeiro com impactos profundos no redesenho das cidades e na vida dos
cidadãos”. Vemos surgir um novo termo: gentrificação
.
Muitas são as demandas nas metrópoles,
especialmente nas dos países emergentes onde as desigualdades são mais
explícitas. Ainda que cada demanda deva ser avaliada individualmente, um olhar
abrangente sobre todas elas é fundamental. Se, por exemplo, mães não têm uma
gravidez saudável, sem acesso a alimentação adequada, a informação quanto a
hábitos de higiene e cuidados consigo e com o bebê e acompanhamento médico, há
grandes chances de gerarem filhos com problemas de saúde. Daí, dificuldades de
aprendizado, evasão escolar, baixa ou nenhuma qualificação profissional,
percepção limitada do mundo e da vida em sociedade e de suas próprias
capacidades.
O sociólogo e pesquisador Marcelo Burgos
afirma que o modo como as cidades são configuradas vai contribuir ou não para a
construção de uma “cultura cívica orientada para a ampliação da participação
social e política na vida citadina”. Cidades são, assim, cenários onde vão se construindo
identidades, produzindo subjetividades e orientando a relação com o outro, com
o Estado.
Olhar os problemas das cidades de modo
orgânico, indo às suas raízes, focando nas causas e não nas consequências, e
criando cidades dignas para pessoas saudáveis, produtivas, criativas,
solidárias é um conceito defendido não apenas por alguns urbanistas e arquitetos.
Na década de 1960, a jornalista Jane Jacobs causou grande impacto com seu livro
“Morte e vida de grandes cidades”. Jacobs faz uma conexão entre a arquitetura
urbana e a necessidade de comunicação entre os indivíduos. A autora enfatiza
que espaços públicos e prédios devem acolher uma diversidade de usos e que as
ruas devem ser ocupadas pelas pessoas. Segundo Jacobs, “as cidades vivas têm
uma estupenda capacidade natural de compreender, comunicar, planejar e inventar
o que for necessário para enfrentar as dificuldades”. Numa época de mudanças
climáticas com gravíssimos impactos sobre as populações e o ambiente como um
todo, esta percepção torna-se crucial.
O projeto “Cidade para pessoas",
criado pelo arquiteto dinamarquês Jan Gehl, vai ao encontro do pensamento de
Jacobs. Ele articula a arquitetura com a psicologia e a sociologia, já tendo
sido chamado de “filósofo das cidades”, e propõe a construção de cidades
compactas, favorecendo a mobilidade urbana. Gehl entende, por exemplo, que o
uso irracional dos carros nas cidades, gerando dezenas de quilômetros de
trânsito, não é a causa, mas um sintoma de mau planejamento urbano. Para Gehl,
“embora os problemas das cidades não sejam todos iguais nas várias partes do
mundo e em diferentes níveis de desenvolvimento econômico, são mínimas as
diferenças envolvidas na inclusão da dimensão humana no planejamento urbano.”
A participação popular
nas decisões sobre as prioridades de uma comunidade, em todos os seus âmbitos,
traz outros olhares e a experiência de quem vivencia cotidianamente as
vantagens e dificuldades do que a cidade oferece a seus habitantes. Certamente,
esta participação terá maior qualidade e eficácia se os habitantes tiverem
acesso à educação qualificada e a meios de informação confiáveis e
diversificados. E se sintam “donos” da sua cidade, no sentido do direito a ela,
de usufruí-la, e no sentido de serem co-responsáveis por sua manutenção como
espaço democrático e saudável, preservando o meio ambiente, os espaços
públicos.
Gehl defende que
“todos os grupos sociais, independentemente da idade, renda, status, religião
ou etnia, possam se encontrar nesses espaços ao se deslocarem para suas
atividades diárias” e as diferentes atividades devem se complementar e não
competir por espaço, assegurando a todos o direito de se expressar e a
liberdade para atividades alternativas. Para ele, não se trata apenas de uma
postura mais humana, mais justa, mas também a mais sensata, com benefícios para
todos.
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Águas de Lindóia-SP (2015) |
Jane Jacobs entende as verbas públicas
como instrumento de recuperação permanente, planejada, “passando de um
instrumento que financia alterações drásticas a um instrumento que financia
mudanças contínuas, graduais, complexas e mais suaves”. Ao expor suas críticas
a modelos de cidades que não priorizam a convivência, Jane Jacobs não as está
condenando, ao contrário. A autora critica o sentimentalismo em relação à
natureza, em oposição à vida na urbe, afirmando que “as grandes cidades e as
zonas rurais podem conviver muito bem” e que, mesmo com muitos problemas, as
cidades não são “vítimas passivas de uma sucessão de circunstâncias, assim como
não são a contrapartida maléfica da natureza”.
Como já afirmou o Secretário Geral das
Nações Unidas, António Guterres, em 2021, estamos, rapidamente, aproximando-nos
de um ponto sem retorno para o planeta. Torna-se, então, urgente repensar conceitos como “desenvolvimento” e
“progresso”. Novos parâmetros deveriam ser levados em conta ao se avaliar a
qualidade de vida dos cidadãos e o sucesso de uma administração pública. É
preciso ir além dos números do PIB (Produto Interno Bruto), priorizando outros
índices, como o IDH (Índice de Desenvolvimento Humano), diante da necessidade
de lançar sobre as cidades e seus habitantes um olhar mais acurado e,
especialmente, que mire além de números e estatísticas.
Referências:
- ONU marca Dia Mundial das
Cidades focando em jovens e ação climática | ONU News
- Brasileira assume ONU-Habitat
e defende que planejamento urbano é chave na solução de crises globais | ONU
News
- Dia
Mundial do Meio Ambiente 2021: mensagem do secretário-geral da ONU | As Nações
Unidas no Brasil
- BURGOS, Marcelo Baumann. Cidade,
Territórios e Cidadania. In: Dados - Revista de Ciências Sociais, Rio de
Janeiro, Vol. 48, no 1, 2005, pp.189 a 222
- GEHL, Jan. Cidades para pessoas. Ed. Perspectiva,
2013
- JACOBS, Jane. Morte e vida de grandes
cidades. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011
- ROLNIK, Raquel. Guerra dos lugares: a
colonização da terra e da moradia na era das finanças. São Paulo: Boitempo,
2015