quinta-feira, 13 de agosto de 2020

PEDRO e CHICA (e livros)

Entrava agosto, deste 2020 distópico. Os oito primeiros dias deste mês seriam os últimos, aqui neste planeta, de Pedro e Chica. Não os levou a pandemia que há meses se move pelos continentes. Ele sucumbiu a problemas respiratórios agravados pelo Mal de Parkinson. Ela, com câncer no pulmão.

 Em minha biblioteca, pobre neste gênero literário, coincidentemente estão as biografias deles dois. Livros de papel – esse produto que a política econômica vigente quer taxar, como se luxo ou supérfluo fosse – são como arcas onde histórias de vida de pessoas como Pedro e Chica podem e merecem ser guardadas e preservadas, mesmo numa era digital. 

 

A biografia de Pedro Casaldáliga eu adquiri ano passado, quando conheci a autora, a jornalista Ana Helena Tavares, durante a campanha para as eleições na ABI-Associação Brasileira de Imprensa.  Ao saber do livro, me interessei em conhecer melhor a história de vida do bispo revolucionário. 

É um relato minucioso e, sobretudo, afetuoso, da trajetória do religioso catalão que aportou por aqui em 1968 e fez-se camponês, fez-se indígena, entregando-se às causas dos mais desassistidos. Conheci pessoalmente a biógrafa, mas não o biografado. 

Na página 183, Ana Helena escreve:

“O homem que nasceu rodeado por gado e que tinha todas as possibilidades de buscar prosperidade optou pela libertação. Não é para qualquer um passar dos 90 anos com a coerência dos que abraçaram o povo e nunca se afastaram dele.

"Pedro quer que o povo carregue seu caixão, a pé, sem carreata, tendo como fundo musical Isaías – tempo de advento. E deseja ser enterrado no Cemitério dos Karajá, em São Félix do Araguaia. De baixo de um pé de pequi, ‘entre um peão e uma prostituta’.”

 E assim foi. Seguindo a vontade de Pedro, a cerimônia realizada ontem às margens do Araguaia seguiu seu desejo de ser enterrado sem pompas, junto àqueles que ele elegeu como seus companheiros de jornada.


Chica Xavier eu conheci pessoalmente. Mãe do amigo de longa data Clementino Jr, de quem me aproximei pelos laços do cinema, tive a sorte de estar com ela pelo menos uma vez. E foi exatamente no lançamento de sua biografia, em 2013, escrita pela xará Teresa Montero. O talento da Chica atriz eu já conhecia há tempos, mas a sensação de estar perto dela foi uma bela descoberta. Uma energia luminosa, de harmonia e afeto envolvia quem dela se aproximava. Nas homenagens que agora lhe rendem, vemos muitos relatos sobre essa aura de amor e cuidado que distinguia Chica.


 Assim escreve Teresa Montero à página 19:

            “A trajetória de Chica Xavier é um retrato das contradições de um país que se recusa a se olhar no espelho, a conhecer a sua história, a aceitar as sua formação étnica. O fato de Chica Xavier ter exercido, durante um período, a função de funcionária pública paralelamente à de atriz permitiu-lhe construir um olhar diferenciado e consciente como cidadã e artista.”

            “Para Chica, a fé não é uma trilha para a alienação, para a acomodação, para a passividade. Ela opta pelo caminho do sincretismo, que não divide, não discrimina, não hierarquiza.”

            “A mistura de religião, educação e arte construiu um tipo de mulher bastante singular: a ‘Mãe do Brasil’. A mãe  cuida, protege, sabe a importância de se preservar os rituais, conservar as tradições, dialogar com a Natureza. Ela guia, aponta, conscientiza.” 

Estou certa de que estar perto de Pedro Casaldáliga também era uma experiência especial, algo que faz estremecer a centelha de humanidade que guardamos em nós e nos faz lembrar que, como diz Fernando Pessoa, “o amor é que é essencial” e que o homem não é só matéria, mas uma “carne inteligente”. O lema de Pedro era “humanizar a Humanidade”. Tão necessário nestes tempos sombrios. 

Origens diferentes, trajetórias diferentes. Ele, nascido na Catalunha em 1928. Ela, nascida na Bahia em 1932. Mas há algo que me faz juntar essas duas criaturas, além do fato de terem partido no mesmo dia e de eu ter a história de suas vidas na minha estante: o cuidado com o outro. 

Gosto de pensar que Pedro, o bispo católico, tomou pela mão a Mãe Chica, católica, apostólica, umbandista (como a define no livro sua filha Christina), e juntos foram abrindo porteiras, rompendo cercas e correntes, com a certeza de terem cumprido a missão que Deus, Oxalá, e outros tantos deuses e deusas que possa haver no comando do universo, lhes confiaram. 

Foto funeral Pedro Casaldáliga:

 https://g1.globo.com/mt/mato-grosso/noticia/2020/08/12/corpo-de-dom-pedro-casaldaliga-e-enterrado-em-cemiterio-indigena-em-mt.ghtml

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