De parabelo na mão, lá se foi Sergio Ricardo, no último dia 23. Seu parabelo era a resistência ao rolo compressor de uma indústria pseudocultural, interessada mais no lucro do que na arte. Compositor, cantor, ator, cineasta, pintor, foram muitos os campos de batalha. Entre danos e ganhos, perdas e vitórias, sempre mantendo a fidelidade a seus princípios.
No final dos anos 90 e durante a primeira década dos anos 2000, eu fazia matérias sobre cultura para o jornal A Verdade, um veículo independente. Era - e é, pois continua rodando, inclusive no digital – um jornal de orientação marxista, ligado a movimentos de esquerda, a causas operárias e lutas sindicais. Mas, como não se deve perder a ternura, jamais, o jornal também sempre deu espaço para assuntos ligados à cultura. Até porque as manifestações culturais e a própria sobrevivência dos que produzem e trabalham pela arte, estão, como tudo na sociedade, sujeitos aos humores e interesses de quem ocupa os gabinetes da administração pública. Nesses tempos de pandemia, esta realidade evidenciou-se ainda mais. Entre os setores mais afetados pelo isolamento social, está aquele ligado a atividades culturais, já bastante prejudicado pela falta de políticas públicas consistentes. Estão aí músicos, atores, dramaturgos, artistas circenses, cineastas, e afins, batalhando para manter sua arte viva e suas contas pagas.
Uma das matérias que fiz para a edição bimensal de dezembro-2000/janeiro-2001 daquele jornal foi uma entrevista com Sergio Ricardo. Ele estava à frente de um bonito projeto instalado na antiga estação das barcas, em Niterói, e conversou comigo e com Luiz Assis, militante ligado à direção do jornal. E eu abria o texto assim:
Algo de novo acontece na antiga estação das barcas, em Niterói, Estado
do Rio de Janeiro. Da velha Officina da Cantareira resta apenas a bela fachada.
Em seu interior, lona e palco - um espaço para eventos musicais, com apoio da
Prefeitura. Poderia ser só isso, mas para o cantor e compositor Sergio Ricardo
- um homem atento à realidade, porém sem abandonar seus sonhos -, é bem mais. O
projeto Palco Livre, idealizado por
ele, é uma verdadeira trincheira da resistência cultural brasileira. São
“jovens” músicos de todas as idades que ali se apresentam, gratuitamente, pelo
prazer de tocar e cantar para quem se recusa a consumir o que o compositor
Vital Farias apropriadamente chama de “lixo atômico musical poético”.
Foi uma conversa embalada por sua voz tranquila e inconfundível, durante a qual ele nos contou sobre sua necessidade de manter a coerência entre discurso e prática. A rebeldia do artista não havia sucumbido aos cabelos brancos, o jeito manso de falar não comprometia seu espírito contestador. Sergio Ricardo reconhecia que não obteve o sucesso que outros alcançaram, mas “não luto por isso, não é esse meu objetivo. O que quero é fazer de minha música, de meu trabalho, uma contribuição para a música brasileira”, nos disse. Considerava-se um sujeito de sorte por ter convido com João Donato, Johnny Alf, João Gilberto, e outros compositores que foram importantes para traçar a trajetória que ele abraçaria e à qual se manteria fiel até o final da vida.
Dedicou-se ao cinema, fez filmes premiados, mas não conseguia levar sua música ao grande público, devido ao boicote de gravadoras, rádios e TV’s. Ressentimento? Nenhum, pois entendia a situação como resultado de uma atitude, de uma posição que ele nunca pretendeu abandonar. Não se curvou às empresas que usam seu poder econômico para “fazer da música um comércio e manipular o gosto popular”. As palavras de Sergio Ricardo traduzem o que Jürgen Habermas, na década de 1960, denunciava: as leis de mercado se infiltram na substância das obras, extrapolando a publicidade, de modo que a criação das obras “se orienta, nos setores amplos da cultura de consumo, conforme os pontos de vista da estratégia de vendas no mercado”.
Este cenário não variou
muito nos últimos 20 anos. Se não há a mão pesada da censura como nos anos 60,
70 (embora existam ultimamente setores ensaiando a volta desse controle
violento), há uma mercantilização da cultura e, evocando outro pensador, Stuart Hall, a cultura
popular quando é mercantilizada e estereotipada, não constitui “a arena onde
descobrimos quem realmente somos, a verdade de nossa experiência”. Apagar
a identidade cultural de um povo, para que ele não se reconheça como tal e sim
como uma massa homogeneizada e não-pensante, é uma estratégia antiga de
dominação.
Quando bate a nostalgia
Bate noite escura
Mãos no bolso e a cabeça
Baixa, sem procura
Beto vai chutando pedra
Cheio de amargura
Num terreno tão baldio
O quanto a vida é dura
Onde outrora foi seu campo
De uma aurora pura
Chão batido pé descalço
Mas sem desventura
Contusão, esquecimento
Glória não perdura
Mas,
Se por um lado o bem se acaba
O mal também tem cura
O projeto musical que capitaneava na época, e que acontecia sob a lona da Cantareira, era a prova de sua capacidade de se renovar, mantendo suas raízes. Foi com grande entusiasmo que nos falou dos artistas convidados, famosos ou desconhecidos. Referia-se ao projeto como um movimento, não estético e com padrões definidos, mas um movimento capaz de reunir tendências musicais variadas, do sinfônico ao cantador de feira ou à música tribal.
Tal como o Corisco de sua música para Deus e o Diabo na Terra do Sol (Glauber Rocha, 1964), Sergio Ricardo não se entregou à sanha gananciosa de gravadoras e de uma mídia massificante e seus versos cabem direitinho no triste Brasil de hoje:
- Se entrega Corisco
- Eu não me entrego não
Eu não sou passarinho
Pra viver lá na prisão
- Se entrega Corisco
- Eu não me entrego não
Não me entrego ao tenente
Não me entrego ao capitão
Eu me entrego só na morte
De parabelo na mão
Fotos: Show Ponto de Partida – site oficial do artista - https://www.sergioricardo.com/
Perfil no Facebook: https://www.facebook.com/artistasergioricardo/
Vale a pena ler:
- Matéria do jornal A Tribuna, com citação ao Palco Livre
- Texto-homenagem do jornalista Mario Sergio Conti, aqui.
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