...
A barca segue, passa sob a ponte, e navega rumo à ilha de
Paquetá. Essas águas guanabarinas são testemunhas de uma história de grandeza e
miséria, de progresso e degradação, do embate entre civilização e cultura. Se no
século XVIII a cidade era vista como o lugar da virtude e da cultura, o século
XIX olha a cidade com espanto: lugar da desordem, doença, vícios. Mazelas que vêm
do capitalismo.
Foto de Augusto Malta - 1906 |
Duas linhas de pensamento veem a cidade nesse momento, numa dualidade
que segue até o século XX. De um lado, a busca pela CIVILIZAÇÃO, caracterizada
pela modernidade, organização, crescimento econômico, embora, paradoxalmente,
ainda conviva com a escravidão. De outro, a ideia de CULTURA, onde vicejam a diversidade,
a vida cotidiana.
Essa linha de ação civilizadora, no
caso do Rio de Janeiro, se apoia particularmente numa ação policial. Como
descreve Edmilson Rodrigues:
Numa
sociedade onde não foram construídos mecanismos de representação política e de
cidadania, a distância existente entre as manifestações públicas do Estado e a
forma de ordenamento da sociedade dá à polícia uma função civilizadora,
definindo-a como intermediária entre a população urbana e o governo.
(RODRIGUES, 2009, p.89).
Mas a literatura vai representar uma vanguarda que
vê outras possibilidades e nuances na cidade. A cidade revela suas múltiplas
faces obra de Machado de Assis e de João do Rio, seja na vida privada,
doméstica, cercada pelas paredes da casa, seja porta afora, na “alma
encantadora das ruas”. Esses intelectuais estão mais ligados à ideia de Cultura
do que de Civilização.
Mais uma vez recorro a Pechman, para quem o
embate entre cidade e processo civilizatório representou uma fonte onde a
literatura e as artes em geral foram se abastecer:
Norbert Elias no seu O Processo Civilizador nos
ensina que, segundo Mirabeau, o que se considera ser civilização não se
confunde com suavização das maneiras, urbanidade, polidez ou decoro. Tudo isso
parece a Mirabeau — assinala Elias — ser apenas a máscara da virtude e não sua
face. A civilização nada faz pela sociedade se não lhe dá a forma e a
substância da virtude. (PECHMAN, 1999).
Em
suas “Cidades Invisíveis”, Ítalo Calvino também coloca o discurso, as
histórias, as narrativas, acima da cidade em si e das atividades que nela se
operam. No texto “As cidades e as trocas”, Calvino nos revela:
Não é apenas para comprar e vender que se vem a
Eufêmia, mas também porque à noite, ao redor das fogueiras em torno do mercado,
sentados em sacos ou em barris ou deitados em montes de tapetes, para cada
palavra que se diz – como “lobo”, “irmã”, tesouro-escondido”, “batalha”,
“sarna”, “amantes” – os outros contam uma história de lobos, de irmãs, de
tesouros, de sarna, de amantes, de batalhas. E sabem que na longa viagem de
retorno, quando, para permanecerem acordados bambaleando no camelo ou no junco,
puserem-se a pensar nas próprias recordações, o lobo terá se transformado num
outro lobo, a irmã numa irmã diferente, a batalha em outras batalhas, ao
retornar de Eufêmia, a cidade em que se troca de memória em todos os solstícios
e equinócios. (CALVINO, 2003, p.40).
A relação do homem com a palavra, as línguas, as
histórias vai além do que é inteligível, da razão. A escrita é movida
pela relação com o mundo informe e caótico que preexiste ao nosso mundo de
adultos, nos diz Mia Couto (2011, p.12). Há um idioma que experimentamos e que
existe não para ordenar, explicar aquilo que não é ainda passível de ser
compreendido, apreendido, mas comunicá-lo sim, de outro modo que transcende as
línguas faladas e escritas conhecidas. O escritor, segundo Mia Couto, acessa
esse idioma na sua tarefa - impossível, diz ele – de traduzir os sonhos, de
suspender o tempo.
A
literatura talvez tenha o papel de suavizar o esforço do homem moderno para se
adaptar à vida nas grandes cidades, crendo que pode preservar sua
individualidade e autonomia. Esforço este comparado por Simmel (2005) à luta do
homem primitivo pela sobrevivência.
Na literatura brasileira, doçura e rudeza,
malícia e ingenuidade, maciez e aspereza, se revezam em obras que caracterizam suas
fases, do romantismo ao realismo. A cidade, com suas doses de ternura e
violência, pulsa em “O Cortiço” (1890), de Aluisio Azevedo, nas aventuras das
“Memórias de um Sargento de Milícias” (1854) de Manuel Antônio de Almeida, nos
dramas de “O Atheneu” (1888) de Raul Pompéia, desliza sorrateira pelos olhos e
falas dos personagens de Machado de Assis (1839-1908). E flui no cotidiano
observado por Paulo Barreto, o João do Rio (1881-1921).
REFERÊNCIAS
CALVINO, Ítalo. As
cidades e as trocas1. In: CALVINO, I. As cidades invisíveis. Rio de Janeiro: O
Globo, 2003, pp.40-41.
PECHMAN, Robert
Moses. Pedra e discurso: cidade,
história e literatura. Revista Semear no.3 Rio de Janeiro, 1999. Disponível em: http://www.letras.puc-rio.br/catedra/revista/3Sem_06.html
RODRIGUES, Antonio
Edmilson M. História da Urbanização no Rio de Janeiro. A cidade capital do
século XX. In: CARNEIRO, Sandra e SANT’ANNA, Maria Josefina (orgs.). Cidade:
olhares e trajetórias. Rio de Janeiro: Garamond/Faperj, 2009.
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