“Estácio de Sá
reconheceu que a expulsão dos franceses do
Rio de Janeiro não
era questão de pouco mais ou menos, e como trazia
a incumbência
gloriosa de fundar uma cidade que dominasse a majestosa
baía, desembarcou
junto do Pão de Açúcar, e na bela praia, que durante
algum tempo se denominou
de Martim Afonso e depois ficou sendo
chamada Praia
Vermelha, lançou, no ano de 1565, os fundamentos de
uma cidade a que deu
o nome de São Sebastião do Rio de Janeiro.”
(Joaquim Manuel de
Macedo, 1862)
Ilha do Gato, atual Ilha do Governador |
A barca desliza sobre as águas da Guanabara. O
ronco do motor é um ruído monótono. Caravelas singraram estas águas, ou outras
águas nestas mesmas águas. Como saber se aquelas moléculas, átomos são outros
ou os mesmos, já que nada se cria, nada se perde?
O aspecto das águas certamente não é o mesmo. Há
de se supor que eram límpidas no século XVI e mesmo nos que se seguiram. Refletiam
o céu e o verde que adornava o contorno da baía. Baía sem nome. Nem Guanabara,
nem boca banguela[1].
Elmo Amador, geógrafo, geólogo e ambientalista,
e profundo conhecedor da Baía de Guanabara, descreve de modo irretocável o
processo pelo qual passou – e passa ainda – essa região.
“Navegar na Guanabara é mergulhar num passado
mágico. É cruzar as mesmas águas singradas pelos Tupinambás e seus ancestrais,
que em suas frágeis canoas e ubás, estabeleceram uma relação harmoniosa de
sustentabilidade com a Guanabara. É percorrer os mesmos percursos feitos pelos
galeões e caravelas e pelas chaluas impulsionadas pelos sofridos e fortes
braços escravos. Em suas águas penetraram corsários e piratas saqueadores,
travaram-se batalhas pela conquista das terras. Em suas águas frequentemente
grandes manadas de baleias pariam seus filhotes no inverno. No interior e
margens da baía lentamente se instalaram diversos ecossistemas periféricos que
asseguravam uma elevadíssima produtividade biológica, que sustentou os povos,
que acompanharam as graduais modificações ambientais sofridas pela baía desde
sua formação. Navegar pela Guanabara é ter a mesma emoção de êxtase dos
visitantes naturalistas que a conheceram e a decantaram em prosa e verso.
As qualidades da Guanabara foram também a sua
perdição. A água abrigada, a facilidade de acesso ao interior através de suas
águas e rios e as riquezas de suas matas atraíram a cobiça dos europeus que
aqui se instalaram e construíram uma cidade colonial, que para se desenvolver
soterrou brejos, lagunas, manguezais, restingas e matas, arrasou morros,
modificou a geografia e finalmente envenenou as sua águas”. (AMADOR, 2003)
Tal como as barcas, saindo do cais da Praça XV, ou,
quem sabe, de outro cais, a literatura nativa do Rio de Janeiro se aventurou
pelas águas da Baía de Guanabara. Um suposto trajeto a levou à Ilha de Paquetá,
que se convencionou ser o cenário do romance de Joaquim Manuel de Macedo, “A
Moreninha”. Se ainda hoje Paquetá guarda um ar bucólico, com charretes e ruas
de terra, em 1844, ano da publicação do romance de Macedo, com suas praias e
matas idílicas ela era o contraponto ideal para a agitação da cidade. E para o
estilo de Macedo, ao gosto das donzelas da época.
A literatura e a cidade parece se alimentarem
reciprocamente, uma provocando a outra, e outra apaziguando[2] a
primeira. Robert Pechman diz que a pedra não faz a cidade e que sobre a “rudeza
da pedra”, da cidade concreta - e muitas vezes hostil – impôs-se a “maciez do
discurso”, das histórias, das narrativas. Ele afirma que:
a literatura teve papel decisivo na
transformação da cidade de fato estético em fato histórico. Estou sugerindo que
as imagens construídas pela literatura, da cidade, transformaram-se em
repertório da própria cidade pelas mãos dos leitores. Ou melhor, as imagens
ficcionais da cidade se transformaram numa chave a destrancar os insondáveis
mistérios de uma cidade que não se revelam à simples observação. (PECHMAN,
1999).
Em seu texto, Pechman cita Carl Schorske para
quem “a partir do século XVIII as cidades são definidas a partir de três
caracterizações: a cidade como virtude, a cidade como vício e a cidade além do
bem e do mal.” (PECHMAN, 1999).
Nas últimas décadas do século XIX, a cidade do
Rio de Janeiro experimentou grandes transformações, como observa Edmilson
Rodrigues (2009). Vários elementos levaram a uma nova configuração da sociedade
carioca: aumento da população e da industrialização, especialmente no setor
têxtil; crescimento das atividades econômicas, com destaque para os serviços; o
surgimento de um mercado de trabalho livre. Há maior circulação de pessoas,
crescimento do setor de transporte público e também da construção civil. Diz
Rodrigues:
As alterações no espaço urbano acabam por
estabelecer novas formas de relacionamento social, surgem novos hábitos, outros
comportamentos, ampliando a diversidade social e as tensões resultantes do
pouco espaço de participação política. Também a violência e os índices de
criminalidade aumentam, ganhando relevo no cotidiano da cidade. (RODRIGUES,
2009, pp.87-88).
A
barca segue, passa sob a ponte, e navega rumo à ilha de Paquetá....
REFERÊNCIAS:
AMADOR, Elmo. Sugestões
de roteiros a serem percorridos por embarcação na Baía de Guanabara – Projeto
Educação Ambiental do PDBG, 2003
MACEDO, Joaquim
Manuel de. Um passeio pela cidade do Rio de Janeiro (1862). Edição do Senado
Federal, vol.42, 2005. Em domínio público. http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/sf000070.pdf
PECHMAN, Robert
Moses. Pedra e discurso: cidade,
história e literatura. Revista Semear no.3 Rio de Janeiro, 1999. Disponível em: http://www.letras.puc-rio.br/catedra/revista/3Sem_06.html
RODRIGUES, Antonio
Edmilson M. História da Urbanização no Rio de Janeiro. A cidade capital do
século XX. In: CARNEIRo, Sandra e SANT’ANNA, Maria Josefina (orgs.). Cidade:
olhares e trajetórias. Rio de Janeiro: Garamond/Faperj, 2009.
[1] O antropólogo Claude
Lévi-Strauss, quando em viagem ao Rio de Janeiro, se disse surpreso com a Baía
de Guanabara, que lhe pareceu uma boca sem dentes. Caetano Veloso resgatou essa
imagem de “boca banguela” na música “O Estrangeiro”. http://letras.mus.br/caetano-veloso/44757/
[2] Flavia
Cesarino Costa, em “O Primeiro Cinema”, fala de uma “certa mágica pacificadora
da narrativa”, que veio transformar o cinema em seus primórdios. Por apresentar
imagens que surgiam e desapareciam abruptamente, os primeiros filmes
eram acusados de provocar uma sensação anárquica que estimularia um “nervosismo
insalubre” (COSTA, Flavia C.. O primeiro cinema: espetáculo, narração,
domesticação. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2005, p.33)
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