Navegando pela Baía de Guanabara, percebe-se
como, alguns séculos depois das caravelas, o processo de civilização nos trouxe
conquistas, mas também destruição. Em suas águas poluídas e turvas misturam-se
o lixo e toda sorte de dejetos que a insensatez, ambição e preguiça humana
despejam na Baía de Guanabara.
Poluição na Baía de Guanabara - outubro 2014 |
Mas a enorme riqueza, o extenso território e o
potencial do país produzem situações paradoxais quando, ao lado de avanços
político-sociais, permanecem ativos os mecanismos de corrupção e manipulação
dos recursos públicos. Grandes obras são realizadas através de negociatas que,
frequentemente, inviabilizaram projetos importantes. No caso do Rio de Janeiro,
o exemplo do plano de despoluição da baía de Guanabara é dos mais melancólicos.
A administração pública em geral, apesar de méritos setoriais, apresenta imagem
de ineficiência e falta de empenho. A solução autoritária, de direita ou de
esquerda, está sempre no horizonte como panacéa para curar os males nacionais,
apesar das calamitosas experiências no passado. (VELHO, 2007, p.20)
Embora integrada à cidade – já teve
vários portos, como Porto da Pedra, Porto da Madama, Porto das Caixas, Mauá, e
outros – e com tantas qualidades e belezas, a Baía de Guanabara não mereceu dos
governantes, e nem da população em geral, os cuidados necessários para sua
preservação. Os sucessivos planos de urbanização/modernização da cidade não a
privilegiaram.
Pereira
Passos, apesar de entrar para a história da cidade rotulado como o responsável
pelo bota-abaixo (1903-1906), tinha uma visão para além da simples modernização/higienização
da cidade. Seu projeto, ainda que de modelo civilizatório, não deixava de contemplar
a cultura. Passos preocupou-se em integrar o mar à cidade, como descreve André
Nunes de Azevedo:
A reverência de Pereira Passos para com a
tradição da cidade expressou se também no respeito à constituição natural do
Rio de Janeiro e sua ligação história com o mar. No segundo relatório da
Comissão de Melhoramentos da Cidade do Rio de Janeiro, Passos projeta uma
avenida à beira-mar que, seguindo a sinuosidade natural do litoral da cidade,
preencheria-o, desde São Cristóvão à praia de Botafogo, buscando assim integrar
o mar à urbe, ao mesmo tempo que a tornava mais convidativa aos seus
visitantes, estrangeiros, que chegavam pelas águas da Baía da Guanabara.
(AZEVEDO, 2003, p.47).
Mas a
Baía em si não era objeto de maiores considerações, embora tenha tido sempre um
tráfego intenso. O Plano Agache (1926), como observa Vera Rezende,
orientado por uma visão estética, pensou a Baía de Guanabara como porta de
entrada dos visitantes estrangeiros. Ou seja, importava mais agradar aos
turistas do que pensar nas condições dos habitantes.
O
Plano Dioxiadis (1964), segundo Rezende, preocupava-se mais com a
eficiência do que a beleza, mas carrega também uma visão colonialista que busca
modelos importados. Segundo a autora, o Plano é utópico, seja por não ter
vínculos com a realidade nacional, seja por não levar em conta fatores ligados
aos custos e também de ordem política.
Cargueiro fundeado na Baía - globalização |
Berço
da cidade, a Baía de Guanabara é também seu relicário, onde ainda há joias como a Ilha Fiscal e as fortalezas, belas, ainda que guardem
tristes memórias. E é também o espelho onde a cidade se reflete. Por ela
pode-se ir ao sossego de Paquetá, por sua barra passam navios de muitas
bandeiras, trazendo e levando as mercadorias que a “civilização” exige.
Fundeados para além da ponte Rio-Niterói, são montanhas de aço que, sobre as
águas, parecem ter uma especial delicadeza.
No livro de Joaquim Manuel de Macedo,
a viagem pelas águas da Guanabara rumo àquela não nominada ilha é descrita
assim:
Ilha de Paquetá vista de um voo rumo ao Nordeste - 2012 |
e, enquanto seu
batelão se deslizava pelas águas, rápido como uma flecha pelos ares, ele o acusava
de pesado, de vagaroso; tinha há muito descoberto a ilha de... e; os objetos
foram pouco a pouco se tornando mais e mais distintos; viu a casa, viu o
rochedo em que outrora a tamoia deveria ter cantado seus amores e de sobre o
qual cantara, há oito dias, D. Carolina a sua balada; depois distinguiu sobre
esse rochedo negro um ponto, um objeto branco, que foi crescendo, sempre
crescendo, que enfim lhe pareceu uma figura de mulher, que ostentava a alvura
de seus vestidos. Depois ele tinha desviado um pouco os olhos; quando os voltou
de novo para o rochedo, a figura branca havia desaparecido como um sonho.
(MACEDO, p.83).
Ainda
que não se deva “confundir uma cidade com o discurso que a descreve”, como nos
alerta Calvino (2003, p.61), eles guardam uma relação entre si, e mesmo quando
aquele fala de “palácios de filigranas” há por trás “uma nuvem de fuligem”. A
cidade comporta tudo e tudo é matéria-prima para a literatura, o cinema, as
artes, enfim.
Vista do alto da Pedra da Moreninha |
A barca chega a Paquetá. A paisagem é bela, mas as águas já não são convidativas
para um banho de mar. A pedra da Moreninha está lá, vigilante, como se para
lembrar a quem chega, vindo do caos urbano, que uma cidade pode conter várias
histórias e deixar-se levar por elas é um antídoto contra a rudeza de outras
pedras, esculpidas pelo homem, de aço e concreto.
Referências:
AZEVEDO, André
Nunes de. A reforma Pereira Passos: uma tentativa de integração urbana. Revista
Rio de Janeiro, no.10, maio-agosto 2003.
CALVINO, Italo. As
cidades e os símbolos 5. In: CALVINO, I. As cidades invisíveis. Rio de Janeiro:
O Globo, 2003, pp.61-62.
MACEDO, Joaquim Manuel de. A moreninha (1844). Ministério
da Cultura. Fundação Biblioteca Nacional. Em domínio público: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bn000008.pdf
REZENDE, Vera.
Planejamento urbano e ideologia. Quatro planos para a cidade do Rio de Janeiro.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1982.
VELHO, Gilberto.
Metrópole, cultura e conflito. In: VELHO, G. (org.) Rio de Janeiro: cultura,
política e conflito. Rio de Janeiro: Zahar, 2007.