Os cheiros
da feira lhe entravam pelas narinas e, num ritmo um tanto alucinado, seu
cérebro processava aquelas mensagens olfativas, provocando em sua mente uma
sucessão de lembranças e sensações, ora claras, ora imprecisas. Muitas
vezes percorrera aqueles corredores, aquela profusão de cheiros, cores e sons.
Mas, neste dia, as melancias lhe pareceram mais sorridentes e as mangas a
transportaram a outro tempo, tempo de infância. Sob o mangueiral, rostos, mãos
e braços lambuzados, fiapos nos dentes. A terra úmida, tapete de folhas e
jibóias serpenteando pelo chão e pelo tronco das árvores.
- Moça, quer limão aí?
Seus olhos
encararam o moleque que lhe estendia uma fileira de limões, aprisionados numa
rede de fios de plástico. Mas ela não o via, ou melhor, via algo além daquela
figura.
Por que a
feira hoje se revelava tão diferente, tão especial? As cenouras e alfaces nunca
estiveram tão vibrantes, as cebolas com tanto brilho, as frutas tão carnudas. A
vida parecia gritar naquelas barracas, como gritavam os feirantes e camelôs,
apregoando suas mercadorias. Sua cabeça
girava num turbilhão, onde ecoava aquele vozerio, cintilava a luz refletida nas
pétalas das flores, pulsavam as sensações despertadas pelos odores.
O dia anterior
- Nome, por favor.
- Aurora Vieira Lima.
- Qual o exame?
- Ultra-sonografia mamária.
- Queira aguardar um momentinho, por favor, senhora.
- Obrigada.
Aurora
sentou-se enquanto esperava o resultado do exame, feito dias antes. Aquilo
sempre fora uma rotina: ginecologista, coleta de material, exame
colpocitológico; laboratório, mamografia, hemograma, ultra-sonografia
transvaginal, mamária... mas, um pequeno caroço no seio, revelado durante o
banho, trazia inquietação. E se fosse um câncer? Já se via no hospital,
mastectomia, quimioterapia, cabelos caindo. Não que estivesse fazendo daquela
espera um exercício de masoquismo, de sofrimento antecipado, mas a
possibilidade, não a certeza, ainda, a colocava diante de uma situação que
nunca havia imaginado. E se morresse? Quanto tempo ainda teria antes do dia
fatal? Será que poderia ainda realizar alguns de seus planos, sonhos? Um
sobressalto a fez estremecer por dentro. Planos? Sonhos? Quais? Teria algum?
Iam seus planos além do quê preparar para o jantar ou de qual presente dar para
a sogra no Natal ou ainda de qual saia vestir para ir ao trabalho? Guardaria
ainda, num sótão empoeirado da alma, algum sonho de garota?
- Aurora Vieira. Aurora Vieira Lima!
A voz da
recepcionista a arrancou de seus pensamentos abruptamente. Pegou o envelope
lacrado, agradeceu e saiu para o hall. No elevador, do 13o andar ao
térreo, retomou o fio daquelas reflexões. Nas mãos, o envelope que continha sua
sentença, pensou, mais dramática do que realmente se sentia.
O horário de verão retardava a noite e, apesar da hora, ainda havia luz num canto do horizonte. As ruas fervilhavam de gente apressada, pareciam todos padecerem de alguma moléstia contagiosa cujos sintomas eram grande agitação, entrar e sair de lojas, colecionar sacolas que as mãos mal conseguiam carregar. De vez em quando, paravam meio que hipnotizados diante de vitrines onde Papai Noel, renas e pinheiros, cercados de muito dourado e de luzes piscantes, garantiam felicidade a quem adquirisse os produtos ali expostos.
O horário de verão retardava a noite e, apesar da hora, ainda havia luz num canto do horizonte. As ruas fervilhavam de gente apressada, pareciam todos padecerem de alguma moléstia contagiosa cujos sintomas eram grande agitação, entrar e sair de lojas, colecionar sacolas que as mãos mal conseguiam carregar. De vez em quando, paravam meio que hipnotizados diante de vitrines onde Papai Noel, renas e pinheiros, cercados de muito dourado e de luzes piscantes, garantiam felicidade a quem adquirisse os produtos ali expostos.
Já em casa,
deixou o envelope sobre um móvel, na sala. Será que o marido ia reparar nele?
Não. Chegou, como sempre, demonstrando cansaço, mais interessado no banho, no
que tinha para o jantar ou no telejornal do que nela. Subitamente, Aurora
sentiu-se como parte da mobília, apenas um elemento a mais na paisagem
doméstica. No máximo, uma planta num vaso. Até a discreta decoração natalina,
por não estar exposta ali todos os dias do ano, parecia ter mais destaque do
que ela naquela casa. E o que era para ela aquela casa? Um lar? Tudo a sua
volta, tão familiar, parecia um pouco estranho. Que afinidade tinha ela com
aquelas coisas? O quanto elas preenchiam sua vida?
Como
sempre, ela e o marido conversaram pouco. Ele reclamou que as laranjas haviam
acabado, gostava de suco pela manhã, ela sabia! Aurora, como se desculpando,
disse “amanhã é dia de feira. Passo lá
antes de ir para o trabalho”. Ele perguntou se os meninos – dois
adolescentes, em férias – haviam ligado. Sim. Ficariam em Saquarema até o dia 22,
voltariam para o Natal. Perguntou-se então se eles voltariam por prazer de
estarem com os pais ou por obrigação ditada pelo calendário que assinalava em
vermelho as datas em que devemos ser alegres, solidários, felizes.
Custou a
dormir e desta vez não era apenas o ronco do marido que afugentava seu sono.
Por que não abrira ainda o envelope? Medo? Ou estava querendo alongar aquele
exercício mental, aprofundar aquelas reflexões que lhe vinham tão
espontaneamente? Por que nunca a assaltaram antes, aqueles pensamentos? Sua
vida era tão “normal”, os dias se sucedendo sem sobressaltos, sem grandes
problemas. Sem emoções. Adormeceu e sonhou com laranjas que ela tentava
carregar, mas que insistiam em cair-lhe das mãos.
Na
feira
- Dois é dez! Dois é dez! Vai aí, madame? tá
fresquinho.
Passou por
frutas de nomes exóticos, que nunca ousara provar, por verduras que não
conhecia. Quanta novidade! Quanta vibração! Os abacaxis reinavam com suas coroas, conscientes
de serem presença obrigatória nas ceias tropicais. Apenas os
peixes lhe pareceram tristes, com suas bocas convexas e seus olhos eternamente
abertos. Mas, mesmo eles eram vida, carne suave e saborosa, amadurecida em
oceanos que ela, repentinamente, desejou conhecer.
Passou
também pelas laranjas, cuidadosamente empilhadas num desenho geométrico cuja
arte só os feirantes conhecem. Encarou-as por alguns instantes, sorriu
maliciosamente e seguiu adiante.
Pegou o
ônibus que ia para Charitas, atravessou a ponte Rio-Niterói, foi almoçar em São Francisco, sem
hora para voltar.
Rio de Janeiro, 2003
2 comentários:
Há poesia nas coisas simples da vida: nas bancadas de frutas, nos chinelos soltos na areia da praia, no costurar palavras e fiar histórias.
Há poesia para quem percebe a beleza da simplicidade, do cotidiano, do dia a dia - sempre ricos em detalhes, cores, imagens e narrativas.
E sempre podemos ter um outro olhar para as coisas que nos cercam. Mais ou menos como fazem alguns fotógrafos e cineastas. Algo como o "kino-glaz" (cine-olho) do Vertov.
Um abraço, Gaulia.
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