E volto ao Haiti, de onde chegam relatos e imagens que superam a ficção, qualquer filme-catástrofe. A destruição que mais me agride não é a dos prédios, é a da própria espécie humana. Não falo do físico, mas da essência humana. Vemos seres que, pelo descaso secular, pela ignorância, pela total falta de direção, de conhecimento, de instrução, de amor, de amparo, de perspectiva, de segurança, se embrutecem, tornam-se feras.
O bem e o mal estão em toda parte: gente que cria e une, gente que destrói e separa; gente que ama e doa, gente que inveja, odeia e explora o outro. No meio do caos, de saques, estupros, mãos generosas, de estrangeiros e dos próprios haitianos, tentam salvar pessoas, tentam salvar nossa humanidade.
Em 2006 os diretores Caito Ortiz e João Dornelas lançaram um documentário sobre o jogo amistoso da seleção brasileira com um time local, no Haiti, em 2004. O filme, como costuma acontecer com os lançamentos nacionais, ficou pouco tempo em cartaz, não teve grande destaque na mídia, pouca gente viu. Nele, além de registrar a euforia com os campeões do mundo, havia espaço para reflexão, para análise crítica do acontecimento no contexto da situação do país caribenho.
A revista Brasileiros (excelente) traz matéria e fotos do repórter Victor Ferreira, que esteve no Haiti a convite de uma comitiva do Ministério da Defesa brasileiro. A edição é a de agosto/2009, mas algumas passagens parecem de agora. Ele conta:
“Consegui escapar das atividades oficiais e ir ver de perto a vida em Cité Soleil. [...] A viagem começou, de verdade, nesse momento. [...] Dos oito militares, sete tinham um fuzil nas mãos. Eu também tinha o meu – a máquina fotográfica. Ainda no caminho para Cité Soleil, descobri que ela podia machucar mais que um fuzil de verdade. Decidi, então, só fotografar quem pedisse ou permitisse”.
“O esgoto reinava insolente em grandes valetas a céu aberto, correndo ao lado das ruas, ora asfaltadas, ora de terra com pedregulhos – o que restou de casas e muros destruídos. Em uma avenida ocupada pelo comércio informal, a grande atividade econômica do Haiti, via-se muitos buracos no chão e nas paredes das residências, resultado da guerra entre gangues e exércitos paramilitares”.
Ele fala da visita ao Centro de Nutrição e Saúde mantido por irmãs de caridade e que acolhe crianças: “Irmã Dulcimar (uma brasileira, nordestina, que vive lá há oito anos) conta que muitas mães ali não sabem sequer quem é o pai de seus filhos. São mulheres, às vezes meninas, que tiveram seus filhos entre 14 e 20 anos. A maioria fruto de abuso sexual. ‘Elas não têm culpa, nunca quiseram o bebê. Então nós temos de ensinar tudo. Até a amar a criança’”.
Dulcimar vivia em Cité Solei quando o presidente Jean-Bertrand Aristide foi deposto, em 2004, havendo então a intervenção externa da ONU. Ela conta ao repórter que “antes era dia e noite aquele barulho de tiro. De manhã, sempre tinha gente morta pelas ruas. Hoje melhorou bastante”. E diz ao jornalista que o Brasil é o grande responsável pela mudança. O país é o que mais contribuiu com a força-tarefa da ONU para estabilizar o Haiti.
Será que a irmã Dulcimar sobreviveu? Será que aquelas jovens mães chegaram a aprender a amar seus filhos? Ou estão todos sob os escombros?
Um comentário:
Cara Tecelã,
seja mto bem-vinda ao Blog do Rádio Carioca.
Um beijinho,
Isa.
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