As mãos enfiadas nos bolsos do longo casaco procuraram pelos dedos... as luvas de lã que, no último momento, resolvera levar consigo. Um exagero, pensara, mas agora eram definitivamente necessárias. Calçou-as apressadamente. Do Tejo subia um vento gelado.
Imaginou o calor que naquele momento estaria fazendo no Rio de Janeiro e agradeceu a Deus por não estar lá. Se havia algo em que acreditava com todas suas forças era no aquecimento global, muito antes de o assunto virar manchete nos jornais do mundo todo e programa de TV. Não tinha a menor dúvida de que as geleiras derreteriam, os oceanos subiriam de nível, as ondas invadiriam as avenidas e ciclovias, alagariam bares e portarias de prédios de luxo, galgariam escadas numa escalada furiosa. Talvez os surfistas gostassem, pensou. Tinha esta mania esquisita: ter pensamentos esdrúxulos em momentos graves. Talvez para amenizar as preocupações e não perder o bom humor, tão necessário sempre.
Mas a verdade é que a harmonia da natureza estava tão abalada – ia pensando consigo - que, se em alguns lugares a água era ameaça, em outros, sua falta é que era o problema. Barcelona mesmo, com seus milhares de turistas, no verão anterior tivera de ser socorrida por navios carregados de água. E no Brasil? Ouvira falar de regiões em processo de desertificação. Ora, deserto no Brasil? Será que chegariam a tanto? Alheios a suas divagações, a rua centenária e seus passantes seguiam no seu ritmo, sem se preocupar com geleiras e desertos.
Dobrou a esquina, já na Rua do Arsenal. Os armazéns ficavam logo adiante, os cheiros denunciavam sua proximidade. Entrou e saiu de duas ou três lojas. Meio distraída, conferiu os preços do azeite de oliva e foi adiante, retomando o fio dos pensamentos, conversando consigo mesma. E foi assim, pensando em voz alta, que entrou em mais um armazém, onde o meio sorriso do vendedor a trouxe de volta a Lisboa. Devia estar achando curioso aquela brasileira distraída, que parecia não saber bem o que queria. “Azeite, meu senhor, azeite para o bacalhau, é o que eu quero”. Conferiu os preços e acabou optando por uma marca desconhecida que o português de olhos bonitos lhe garantiu ser o melhor.
E lá se foi de volta, provavelmente a única pessoa a estar pensando em aquecimento global e coisas afins, naquela manhã de fevereiro. Coisas como crescimento econômico, escassez de alimentos, consumo excessivo, biocombustíveis, camada de ozônio. Tentava arrumar as idéias enquanto caminhava. São tantas palavras a bater na porta de nossos ouvidos, querendo entrar, ou melhor, entrando mesmo sem bater, fazendo uma algazarra danada em nossa cabeça. E nem os especialistas se entendem: para uns, o planeta está à beira de um colapso, é uma questão de poucas décadas. Outros consideram estas previsões alarmistas, dizem que o mundo não está tão mal assim, que é preciso crescer, não se pode parar a produção, vai haver desemprego, e coisa e tal... Afirmações que às vezes são verdadeiras armadilhas, ela tinha certeza. Parecem convincentes num primeiro momento, mas, quando confrontadas com outras questões, desmoronam. Como as geleiras.
Ah, as geleiras! Era uma questão de tempo, não sabia quanto. Ficou imaginando se ainda estaria viva para ver a orla carioca devorada pelo Atlântico. E se George Bush também viveria o bastante para ver no que deu não assinar o Protocolo de Kioto. Talvez se refugiasse no Texas.
Lembrou das postas de bacalhau que deixara dessalgando e iriam comer no jantar do dia seguinte. Subitamente, num desses truques que só a mente sabe armar, imaginou os bacalhaus levados pelas ondas gigantescas, nadando – ainda que salgados e sem cabeça - nas belas avenidas da zona sul carioca, invadindo os restaurantes onde seus filés são vendidos a preço de ouro. Novamente pensamentos brincalhões, como palhacinhos que pulam de caixas-surpresa, a assaltavam. Lembrou-se de um antigo programa de TV. “Vocês querem bacalhau?” gritava Chacrinha para sua platéia, em tempos longínquos, quando ninguém imaginaria que geleiras pudessem derreter como picolés ao sol. “Pois aí estão os bacalhaus!”, falou em voz alta, subindo, com ar grave, a bela Rua do Alecrim.
6 comentários:
E da rua do Alecrim e gente vê quase o mundo todo. Haja esperança.
Mil beijos
Ai ai Lisboa Lisboa.... saudades da terrinha!
Adorei o blog! ;)
Bjks
ah, nem me fala, Lyli! terrinha boa aquela, hein?
Fiquei mto feliz com sua visita e comentário. Bj.
Esta pessoa que anda pelo seu texto com tantos pensamentos passando na cabeça foi cursista de Jornalismo de Políticas Públicas Sociais?
:^)))
Teresa,
que belo conto!Adorei essa imagem das ondas galgando escadas em prédios de luxo na orla do Rio e os surfistas curtindo....Acho sim, que há sempre 2 lados da mesma história e, enquando uns se dão mal, outros são beneficiados.
bjo,
Nana
olá, G
foi do JPPS sim.
E você G, quem é?
abç.
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