Ainda que estejam no rol dos Direitos Humanos desde 2010, conforme resolução da ONU, o acesso à água limpa e os serviços de saneamento básico ainda são desconhecidos por milhões de pessoas em todo mundo, inclusive por boa parte dos brasileiros. Números do portal do SNIS batem com os do estudo do Instituto Trata Brasil e revelam que cerca de 35 milhões de brasileiros ainda vivem sem água tratada e 100 milhões não são atendidos pela coleta de esgoto.
Sancionado em 2020 pela Lei 14.026, o Novo Marco Legal do Saneamento não foi capaz
de reverter este quadro. Os bilionários investimentos no setor não foram
suficientes para atingir as metas da legislação. Os dados constam da 14ª
edição do Ranking do Saneamento, publicado pelo
Instituto Trata Brasil, que avaliou os 100 maiores municípios brasileiros. Cidades
dos estados do Sul e Sudeste ocupam as primeiras posições do ranking, lideradas
por Santos (SP). Entre os 20 piores estão municípios da região Norte, alguns do
Nordeste e Rio de Janeiro.
O Plano Nacional do Saneamento Básico, de
2007, trouxe avanços, mas a Lei que o criou já sofreu inúmeras alterações. Houve
redução nos investimentos na área e o Novo Marco do Saneamento facilitou a privatização
dos serviços prestados pelo setor. Pela nova lei, empresas públicas não poderão
ser contratadas diretamente, devendo disputar uma licitação com empresas
privadas. Outra perda, foi o veto do Presidente da República ao artigo que permitia
a extensão dos contratos atuais com as empresas públicas por mais 30 anos.
Por outro lado, durante a Semana do Meio Ambiente, realizada pelo Fórum de Ciência e Cultura da UFRJ, em junho, Ana Lucia Brito, professora do PROURB/UFRJ e coordenadora do Laboratório de Estudos de Águas Urbanas, destacou que o leilão de blocos da CEDAE foi uma contrapartida relativa a um empréstimo feito pelo governo estadual no exterior e foi realizado sem um debate público prévio. A pesquisadora ressaltou a falta de representatividade da população na Câmara Metropolitana, uma vez que muitos municípios do estado não têm assento no órgão e ficam sujeitos às decisões daqueles que lá têm participação.
A empresa vencedora da licitação, Águas do Rio,
informa em seu site que é “concessionária da Aegea, líder no setor privado de
saneamento básico no Brasil, é responsável pelo abastecimento de água e
esgotamento sanitário em 27 municípios do Estado do Rio de Janeiro, incluindo
124 bairros da capital, atendendo 10 milhões de pessoas.” Informa ainda que,
considerando o início da concessão, novembro de 2021, a companhia realizará “o
maior investimento em saneamento básico no país, em torno de R$ 39 bilhões” e
que a universalização dos serviços de água e esgoto será alcançada nos primeiros
12 anos. Contudo, quase um ano depois da concessão, são frequentes na mídia as reclamações dos usuários quanto à má qualidade
dos serviços, tanto prestados pela Cedae quanto pela empresa Águas do Rio.
Muitas vezes as contas chegam, mas a água não.
Suyá Quintslr, professora
do Instituto de
Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (IPPUR/UFRJ), vê uma
contradição entre as privatizações e o discurso que promete reduzir desigualdades.
Em entrevista ao jornal Brasil de Fato, quando da aprovação pelo
Senado do PL 4162 que criou o Marco do Saneamento, em julho de 2020, a pesquisadora
destacou a “tendência amplamente documentada dos operadores privados optarem
por investir nos serviços nas áreas nas quais eles são lucrativos, deixando as
redes e infraestruturas das áreas habitadas pela população com reduzida
capacidade de pagamento se degradarem". Na mesma ocasião, o engenheiro e
coordenador do Observatório
dos Direitos à Água e ao Saneamento (Ondas), Marcos Montenegro, afirmou que o projeto
“vem embalado por uma campanha que destaca as mazelas, mas não conseguiu fazer
um diagnóstico das causas dos problemas que nós vivemos”
Num processo inverso
às privatizações, nos últimos anos, mais de 300 cidades em diferentes países
reestatizaram seus serviços de tratamento de água e esgoto, conforme aponta um estudo
do Transnational
Institute, um centro de pesquisas sediado na Holanda. Entre elas, Paris,
Berlim, Turim, Buenos Aires e La Paz. Sobre essas remunicipalizações, Suya
Quintslr destacou que elas ocorreram por diferentes motivos, mas sempre com
foco no interesse público. No caso da criação da Eau de Paris, por
exemplo, a intenção foi assegurar que os recursos recebidos seriam reinvestidos
por uma empresa pública e não apropriados por uma empresa privada. Já na América
Latina, as cidades de Cochabamba e Buenos Aires passaram por processos mais conturbados.
Na cidade boliviana, a reestatização ocorreu após grande mobilização popular, a
Guerra da Água, que contestava os aumentos de tarifa e as restrições impostas
ao acesso até mesmo a fontes de água bruta. Os cidadãos da capital argentina
também tiveram o fornecimento de água remunicipalizado após a concessionária privada
descumprir cláusulas do contrato e promover aumentos de tarifa, ocasionando transtornos
e prejuízos à população.
A pesquisadora chamou a atenção para o fato
de que há diferentes maneiras de a inciativa privada participar do fornecimento
de serviços essenciais, como o saneamento. Citou como exemplo a Sabesp, companhia
estadual que lançou suas ações na bolsa, mas manteve o Governo do Estado de São
Paulo como principal acionista e controlador. Lembrou também as PPPs, ou
parcerias público-privadas, como a adotada em Recife. No caso da Cedae, o modelo
adotado é a concessão dos serviços de água e esgotos para uma companhia privada
e, neste tipo de contrato, ela considera que deveria haver uma regulação forte
por parte do Estado.
Foto: https://blog.brkambiental.com.br/relacao-entre-saude-e-saneamento/