sábado, 29 de janeiro de 2011

NEFERTITI SEQUESTRADA


Leio no jornal O Globo que a Alemanha não devolverá ao Egito o busto de Nefertiti, tesouro arqueológico de inestimável valor, encontrado em 1912 pelo arqueólogo alemão Ludwig Borchardt. Segundo o presidente do Conselho de Antiguidades do Egito, Zahi Hawass, o tal alemão teria minimizado o valor de sua descoberta a fim de levar a peça para a Alemanha, onde está exposta no Museu de Neues (Berlim).


A matéria cita ainda a Pedra de Roseta, aquela que a gente fica conhecendo nas aulas de História e que forneceu a chave para que os hieróglifos fossem decifrados. A tal pedra – um bloco de granito – também é atração num museu europeu, o Britânico.


Aí fico pensando na globalização e nas “maravilhas” que ela nos proporciona. O sujeito pode tomar Coca-Cola em Moscou, ouvir rock na Coréia, como também usar um lenço “italiano” made in Taiwan. E também pode – e é – massacrado por uma pseudo cultura global cujo interesse é vender e para quem o cidadão é apenas um potencial consumidor.


A globalização[1] dos bens culturais, no sentido de compartilhar conhecimento, beleza, arte, reflexão, é indiscutivelmente bem vinda. Mas vemos uma globalização que se caracteriza, na verdade, pela apropriação de bens, a dominação de uma nação sobre a outra, coisa mais antiga do que andar pra frente, como dizemos nas conversas de bar.


Essa discussão vai longe, passa pela cultura de massa, indústria cultural, homogeneização, hibridização e outras palavrinhas e “palavrões” que permeiam os textos acadêmicos. Mas acho que as palavras do filósofo francês Edgar Morin[2] dão um dimensão clara do que deveria ser essa troca entre os povos, facilitada pela tecnologia. Uma troca que sirva de alimento à criação e à reflexão e nunca de empobrecimento intelectual e cultural.


“Um folclore planetário se constituiu e se enriquece com as integrações e os encontros. No que diz respeito à arte, à música, à literatura e ao pensamento, a globalização cultural não é homogeneizadora. Ela é feita de grandes ondas transculturais que favorecem a expressão das originalidades nacionais em seu seio.”

E acrescento: resguardando a soberania das nações sobre sua História. Assim, quem quiser visitar Nefertiti deveria ir ao Egito e não à Alemanha, do mesmo modo que deveríamos ir ao Cairo, e não a Londres, para ver a Pedra de Roseta. Hawass, nos diz a matéria do jornal, já conseguiu recuperar cerca de 5 mil artefatos que se encontravam em museus pelo mundo. Tomara que a rainha egípcia também possa voltar para casa.



[1] Renato Ortiz, sociólogo e antropólogo, professor da Unicamp (SP), cunhou o termo mundialização para tratar de uma globalização ligada ao aspecto cultural, e não ao aspecto econômico.
[2] MORIN, Edgar. Por uma globalização plural (especial para o "Le Monde”). Folha de São Paulo, domingo, 31 de março de 2002- FOLHAmundo: http://vello.sites.uol.com.br/plural.htm

sábado, 15 de janeiro de 2011

UMA VOZ, UM CARRO, UM ALTO-FALANTE



Nada substitui o pensamento humano. Se a ele somamos a iniciativa, o movimento e especialmente a solidariedade, muito se pode fazer, mesmo com poucos recursos. Assim foi em Areal, município afetado pela avalanche de terra, pedras, galhos e torrentes de água, que desabou sobre a região serrana, nos últimos dias. Um alerta feito do modo mais tradicional possível – carro com uma gravação, circulando pelas ruas da cidade – permitiu que muitos moradores tivessem tempo de sair de suas casas e assim se salvassem da inundação.

Parece que não houve mortos ou apenas algumas mortes. Alguns mortos, para suas famílias e amigos, não são “apenas” alguns, são seus queridos, seus amores, seus companheiros. Mas as tragédias, como as guerras (que também são tragédias, convenhamos), são medidas em números. As estatísticas nos dão a dimensão das catástrofes. Assim, Areal – pequeno município com cerca de 10 mil habitantes – teve, segundo o Prefeito, 70% de sua área destruída, mas vidas humanas foram poupadas.

Faço esta reflexão porque observo criticamente, como tantos outros, esta época em que nos colocamos reféns da tecnologia. A máquina está acima do homem, sejam os carros que tomam nosso espaço na cidade, sejam os celulares nos quais as pessoas falam o tempo todo, inclusive ao volante, sejam os computadores, e toda a parafernália que a tecnologia nos oferece.

Não se trata de maldizer a modernidade. Bem vinda seja a tecnologia, da qual nós todos nos beneficiamos (inclusive para criar e ler este blog), mas o carro de som de Areal nos dá a dimensão de como pequenas atitudes, que não demandam gordas verbas, burocracia, jogo político, podem fazer toda a diferença. Passamos tempo demais olhando para telas de LCD e de menos olhando à nossa volta.

Cito aqui Néstor Garcia Canclini, falando sobre os meios eletrônicos que “fizeram irromper as massas populares na esfera pública foram deslocando o desempenho da cidadania em direção às práticas de consumo”. Este paradoxo que irrompe no século XX e mais ainda no XXI – evolução tecnológica, destacadamente no campo da comunicação, e sociedades ainda, ou mais que antes, enfrentando conflitos e entraves na convivência entre seus membros – reflete-se nas palavras de Edgard Morin ao afirmar que o planeta, embora disponha de um “sistema de comunicação, de uma economia, uma civilização e uma cultura”, carece de outros “dispositivos essenciais, que são a governança, a cidadania, o controle dos poderes, sem falar na consciência comum de fazer parte da Terra-Pátria.”

A relação entre as pessoas, ainda que mediada por esta ou aquela tecnologia, ancora-se no sujeito que opera o aparelho. E sua competência para interpretar e traduzir a realidade – ou os discursos produzidos como tal - não pode ser substituída pelos recursos do aparato, por mais sofisticado que seja. É necessário o reconhecimento do outro, do semelhante. A partir dessa consciência, é possível estabelecer uma verdadeira comunicação que se dê na instância da vinculação (e não apenas da relação), como define Muniz Sodré.

http://www.sidneyrezende.com/noticia/117092+aviso+em+carro+de+som+alerta+moradores+de+areal+sobre+alagamento

http://videos.r7.com/municipio-de-areal-no-rio-tambem-sofre-com-destruicao-da-chuva/idmedia/dc0e884bb9bfc5165abeb67b38e5aaa5.html

http://oglobo.globo.com/rio/mat/2011/01/13/chuva-causa-transtornos-tambem-em-areal-sao-jose-bom-jardim-sumidouro-923495051.asp

Autores citados:
CANCLINI, Néstor G. Consumidores e cidadãos. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 1995

MORIN, Edgar. Por uma globalização plural (especial para o "Le Monde”). Folha de São Paulo, domingo, 31 de março de 2002- FOLHAmundo: http://vello.sites.uol.com.br/plural.htm

SODRÉ, Muniz – entrevista disponível em http://www2.metodista.br/unesco/PCLA/revista9/entrevista%209-1.htm

sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

DONA DILMA E SEU MADRUGA


Descobri um livro que gostaria de ter ganhado de Papai Noel. Como isso não aconteceu (na verdade, eu nem sabia da existência do tal livro até ontem), já estou tratando de me presentear com esta obra indispensável. O livro em questão é Seu Madruga, vila e obra, de Pablo Kaschner, com ilustrações de Maurício Melo (sim é VILA, com “L”).

Nunca assisti regularmente ao seriado Chaves, mas, como já tive criança em casa, de vez em quando via trechos de algum episódio. Atualmente, vez por outra, zapeando aqui e ali, dou de cara com o garoto do barril e seus companheiros. Aí, me detenho, ainda que por alguns minutos, para saborear aqueles deliciosos comentários, as respostas de uma lógica ímpar com que aquelas “crianças” nos surpreendem. É um programa tosco, criado nos anos 1970, impensável num século XXI que faz da tecnologia seu “bezerro de ouro” para adoração. Por isso fico extremamente feliz quando vejo que a garotada, jovens, adolescentes e mesmo cinqüentões (como eu) curtem o programa.

Folheando rapidamente o livro, na livraria, um nome me chamou a atenção: Dilma Roussef, ainda identificada como Ministra da Casa Civil. Pois Dona Dilma dá seu depoimento ao autor, dizendo que gostaria de ter tido mais filhos e que sua menina, Paula (que amanhã desfilará ao lado da mãe na cerimônia de posse da nova Presidente), só comia assistindo ao Chaves. Pois taí: fiquei mais confiante ainda no novo governo. Tenho uma convicção particular de que quem gosta do seriado Chaves (e do Chapolim Clorado) só pode ser gente boa.

Seu Madruga, com sua ingênua esperteza, é o brasileiro, o sul-americano, o latino, o cidadão do Terceiro Mundo, que faz seus malabarismos para sobreviver, aplica seus golpes, mas tem uma doçura que o faz mais humano do que muito “bom moço”. Silvio Santos foi corajoso e teve sensibilidade em apostar no seriado, contrariando seus conselheiros.

Tomara que, com os problemas do SBT, Chaves e sua turma não fiquem sem espaço na TV aberta (atualmente é exibido também no canal a cabo Cartoon Network). E tomara que a Presidente tenha um tempinho para relaxar no sofá ou no tapete, pés descalços, esquecer os compromissos de Chefe de Estado, ser somente a Dilma, mãe da Paula e avó do Gabriel, e (quem sabe, ao lado deles) curtir o seriado mexicano. Certamente terá boas inspirações para seu governo.



Seu Madruga, vila e obra - Pablo Kaschner (ilustrações de Maurício Melo)
Editora Mirabolante
http://www.mirabolanteeditora.com.br/produtos_descricao.asp?lang=pt_BR&codigo_produto=12

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

NARRADORES, LOBOS E SABEDORIA



Há anos ouvia falar do livro Mulheres que correm com os lobos, da analista junguiana Clarissa Pinkola Estés. Por falta de dinheiro, dúvida sobre se valeria mesmo a pena, preguiça de ler... enfim, fui adiando a compra do livro. Mas há algumas semanas a loba me convenceu e encomendei pela internet. Agora, com toda a matilha na cabeceira, descubro que chegou na hora certa.

Ansiosa e cercada de montanhas de livros e textos xerocados para ler (sou da atribulada tribo dos mestrandos), comecei a leitura, mas logo fui avançando para uma e outra história, pulando páginas. Tudo bem, volto quando necessário e certamente em algum momento o terei lido todo, ainda que leve tempo, afinal são mais de 600 páginas.

Na página 36 ela já me seduz ao dizer que “as histórias conferem movimento à nossa vida interior, e isso tem importância especial nos casos em que a vida interior está assustada, presa ou encurralada. As histórias lubrificam as engrenagens, fazem correr a adrenalina, mostram-nos a saída...”. Penso em Nietzsche, que aposta no movimento. E movimento (e narrativa) é também cinema, onde muitas vezes encontro em filmes especiais indicações dessas saídas. Mas o que me interessa compartilhar hoje é este pequena história que ela conta na página 49 e que me levou a conexões com outras leituras e mesmo com o filme Ondine, comentado no post anterior.

Os quatro rabinos
Uma noite quatro rabinos receberam a visita de um anjo que os acordou e os levou para a Sétima Abóbada do Sétimo Céu. Ali eles contemplaram a sagrada Roda de Ezequiel.

Em algum ponto da descida do Pardes, Paraíso, para a Terra, um rabino, depois de ver tanto esplendor, enlouqueceu e passou a perambular espumando de raiva até o final dos seus dias. O segundo rabino teve uma atitude extremamente cínica. “Ah, eu só sonhei com a Roda de Ezequiel, só isso. Nada aconteceu de verdade.” O terceiro rabino falava incessantemente no que havia visto, demonstrando sua total obsessão. Ele pregava e não parava de falar no projeto da Roda e no que tudo aquilo significava... e dessa forma ele se perdeu e traiu sua fé. O quarto rabino, que era poeta, pegou um papel e uma flauta, sentou-se junto à janela e começou a compor uma canção atrás da outra elogiando a pomba do anoitecer, sua filha no berço e todas as estrelas do céu. E daí em diante ele passou a viver melhor.

[...]
A história recomenda que a melhor atitude para vivenciar o inconsciente profundo é a do fascínio sem exagero ou retraído, sem excessos de admiração ou de cinismo; com coragem, sim, mas sem imprudência.”


Em Imagens do Pensamento, um dos capítulos (se é que podemos assim chamar esse agrupamento de histórias, fragmentos, compilados no livro) de Obras Escolhidas, vol.II (Rua de Mão Única), de Walter Benjamin, o alemão fala do Caminho do Sucesso em Treze Teses. Diz ele no item 1:

“Não existe nenhum grande sucesso ao qual não correspondam esforços reais. Seria um erro, no entanto, admitir que esses esforços sejam sua base. Os esforços são a consequência. Consequência da elevada auto-estima e da elevada disposição para o trabalho daquele que se vê reconhecido. Por conseguinte, uma grande exigência, uma hábil réplica e uma feliz transação são os verdadeiros esforços subjacentes aos verdadeiros sucessos.”

Penso então...assim como os rabinos, não basta ter acesso ao conhecimento, é preciso saber decifrá-lo, apreendê-lo, senti-lo, num processo não necessariamente ou puramente racional. Aí recordo um dos diálogos do filme Ondine, onde o sábio padre alerta um assustado Syracuse: ser infeliz é fácil, já a felicidade requer esforços.

Bom para pensar.

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Sala Escura: ONDINE


Ondine poderia ser uma versão pós-moderna da Pequena Sereia, que migra das águas da Dinamarca para as irlandesas, e acaba caindo na rede de um pescador meio desajeitado. O próprio anti-herói, ex-alcóolatra e motivo de riso da comunidade onde vive, ao capturar com sua rede a jovem Ondine (Alicja Bachleda), Syracuse (Collin Farrell) pesca bem mais do que uma bela mulher. Mergulha numa teia de mistério e fantasia onde terá de lidar com alguns inimigos, inclusive ele mesmo.

A fotografia escura - algumas cenas são apenas ouvidas, pouco se consegue ver – pode causar algum desconforto, uma sensação de claustrofobia e uma ansiedade quanto ao desenrolar da trama. Claro que essa opção do fotógrafo Christopher Doyle não foi por acaso. A ideia certamente é passar essas sensações, uma impossibilidade de comunicação, talvez, uma angústia que está presente nas lendas e contos de fadas. E frequentemente na vida real. Some-se a isso que as próprias locações já são cinzentas. Entretanto, relaxe, pois o filme não decepciona. E fique atento aos deliciosos diálogos de Syracuse com o padre local (Stephen Rea, parceiro de Jordan em outros filmes memoráveis). São pérolas que o espectador provavelmente levará consigo na memória.


Contos de fadas e histórias fabulosas permeiam o filme. O título vem de Undine, um romance alemão do século XIX, sobre uma mulher espírito das águas, que por sua vez se baseia num conto do folclore francês e traz semelhanças com a Pequena Sereia de Andersen. Já foi peça de teatro, ópera e balé. No filme de Jordan, ela pode também ser uma selkie, mulher-foca das lendas escocesas. E há ainda referências à Alice (a do coelho branco) e Branca de Neve.

Competente, Neil Jordan acerta nas doses de fantasia, mistério, realidade e apresenta um desfecho bastante surpreendente. Com um certo jeito de filme para crianças, inclusive com forte presença da menina Annie (Alison Barry), Jordan poderia ter resvalado num filme confuso, chatinho ou pretensioso, mas na verdade nos oferece uma obra que resgata aquela necessidade de ouvir histórias, de sonho e de esperança que muitas vezes fica esquecida no fundo dos mares de nossa alma.

ONDINE (Ondine)
Irlanda/EUA, 2009
Direção e roteiro: Neil Jordan
111 min – 12 anos
Estreia 05/11/10
Trailer: http://www.imagemfilmes.com.br/imagemfilmes/principal/filme.aspx?filme=148097&sid=12b8b55a4c9bc8bb1ab59313db173fb2