A cidade é para todos, mas alguns – não sei se a maioria, mas aparecem
mais - veem o mundo por uma pequena fresta, direcionam seu olhar, e palavras, para
o que lhes convém. A cidade é só deles: obstruem a calçada, “criam” vagas de
estacionamento, avançam o sinal vermelho. Não te enxergam, te empurram,
bloqueiam tua passagem. Porque vivem numa competição insana, ou porque são
egocêntricos, ou porque seus olhos estão presos a uma telinha luminosa e têm pressa,
muita pressa. E parece que cada vez mais chegam a lugar algum.
Há uma crise de civilidade, de respeito pelo outro, de atenção, de
cuidado para com as pessoas, com o espaço público, com o meio ambiente, com a
vida, enfim. Uma ciranda em que um mal puxa outro maior e vamos em direção à
decadência. Os fins justificam os meios, dirão alguns. E se os meios são
questionáveis, os fins também já se mostram viciados, deformados, calcados no
interesse pessoal, na vaidade, no desejo de superar o outro e ser o grande
senhor da verdade, o justiceiro que está acima de todos e pode, por isso,
determinar o que é o bem e o mal.
Lutar por direitos, por justiça, é básico, é primário, é sagrado em
qualquer sociedade. Usar de violência contra aqueles que saem às ruas é um
crime. Igualmente, usar artifícios, artimanhas, mentiras, falsas verdades,
indução ao erro, generalizações, venha de onde vier, é atitude covarde,
canalha, criminosa. E burra. Todos perdem.
Para aquele que tem o olhar mesquinho, se há policiais corruptos, então
toda a PM vira alvo de ataques. Se o Governador e o Prefeito não merecem o
cargo que têm (e ao qual chegaram com votos – não o meu - dessa mesma população,
convém lembrar), todos os problemas e todas as soluções cabem exclusivamente ao
poder público. Eximem-se assim de toda responsabilidade.
Crise de responsabilidade, incapacidade de abrir mão, de compartilhar,
de ceder, de dividir. Uma epidemia que devasta nossa sociedade, tal como a
cegueira descrita por Saramago.
Stuart Hall viveu uma vida de luta pelas liberdades, pela igualdade,
fazendo da Universidade e das ruas seu campo de batalha. Reflexões e ações
marcaram sua vida, integrando a academia e o trabalhador, o intelectual e o
homem simples, validando toda manifestação cultural legítima. O garoto humilde,
jamaicano, olhava o mundo por uma enorme janela, por isso tornou-se sábio,
respeitável, humano no maior sentido que isso pode ter.
Dia triste, em que morrem duas “peças” fundamentais na engrenagem que
move a comunicação, laço maior para o entendimento entre os indivíduos. Pelas
lentes de Santiago Andrade podemos enxergar o que nossos olhos não alcançam. As
reflexões e obras de Stuart Hall revelam o que está além das lentes, do olhar.
Aliam experiência e pensamento, ato e ideia, ajudam a interpretar o mundo.
Hall possivelmente ainda teria mais a nos dar, mas viveu 82 anos ricos e
produtivos. Já o cinegrafista Santiago, vai embora desse mundo abruptamente,
num golpe que fere muito mais que seu corpo, que mata muito mais do que um
indivíduo.
Creio que precisamos limpar o olhar, alargar a janela por onde vemos o mundo.
Talvez assim consigamos enxergar o quanto somos únicos e iguais, importantes e
efêmeros, fortes e frágeis. E todos de uma mesma espécie, que avança na
tecnologia, mas parece agora retroceder no seu processo de evolução humana.
Stuart Hall foi professor de Sociologia, teórico dos Estudos Culturais, nascido
na Jamaica e radicado na Grã-Bretanha, onde integrou o CCCS Centre for
Contemporary Cultural Studies.
*Ver “Cidade para pessoas”, um projeto inspirado no arquiteto
dinamarquês Ian Gehl: http://cidadesparapessoas.com/