segunda-feira, 19 de dezembro de 2016

MAIS QUE UM TÍTULO, MAIS QUE UM JOGO



A conquista seria trazer na bagagem a vitória no primeiro jogo da final, seria estar mais perto do título. Era Brasil contra Colômbia, Chapecó contra Medellín. Por uma mágica que o imponderável, às vezes com dor, opera, o “contra” se transformou em “com”.

A filósofa alemã Hannah Arendt, no livro A Condição Humana, diz que três são atividades primordiais para a manutenção da vida humana: o “trabalho”, atividade do animal laborans, que busca atender às exigências do corpo humano e sua necessidade de se manter vivo; a “obra” que é resultado da atividade do homo faber, o inventor de objetos, que cria coisas artificiais. A terceira é a “ação” e compreende sua capacidade de se comunicar (o discurso), de participar, de ser agente social e político. Diz ela:

         Esta qualidade reveladora do discurso e da ação passa a um primeiro plano quando as pessoas estão com as outras, nem “pró” nem “contra” elas – isto é, no puro estar junto dos homens.”

Ou seja, é no “estar junto” que a condição de humano alcança sua plenitude.

Eles não sabiam, mas a conquista que lhes estava reservada era maior, bem maior. Num mundo de disputas e ódios, numa época de vaidades e cobiças extremas, de intolerância e individualismo exacerbado, de acirrada competição, a tragédia da Chapecoense nos prova que é possível sim haver solidariedade, compaixão, generosidade, afeto. É possível “estar juntos”. Coube ao mundo do futebol – jogadores, técnicos, jornalistas esportivos – este triste, mas belo alerta.

Ao demonstrar meu interesse pelo universo do futebol (e ele é vasto), várias vezes percebi o olhar de desaprovação, talvez até de superioridade  de quem o considera coisa de gente ignorante, grosseira, inculta. Não falo aqui de gosto (eu mesma não gosto de nenhum outro esporte), mas de preconceito e até arrogância. Citam, cheios de suposta razão, a violência das torcidas, os excessos e fanatismos, as cifras milionárias e as falcatruas nas transações. Como se esses males forem inerentes ao futebol em si e não a quem os pratica e não acontecessem em muitas outras áreas, do esporte ou não.

Murtaza Ahmadi com a camisa improvisada da seleção argentina

Alain Bergala, roteirista, ensaísta, professor da Sorbonne, que teve uma infância difícil, diz que o cinema o salvou. Na sala escura a magia do cinema o fez resistir às adversidades e buscar um sentido para sua vida. O futebol salva muitos moleques, de pés sujos, joelhos esfolados. E nos oferece cenas sublimes como a do encontro do menino afegão com Messi, há poucos dias, num jogo amistoso, no Qatar. A espontaneidade em meio a tantos adultos e o olhar daquela criança para seu ídolo carregam mais força, mais verdade, mais promessas do que qualquer ritual, cerimônia, gesto oficial. É certo que essa criança, como tantas outras neste insensato mundo, necessita muito mais que uma camisa de futebol. Mas o quanto aquele momento foi e será decisivo nos rumos de sua vida? E quanto vale o que provoca em nós, o quanto nos comove, faz refletir?

O botafoguense Arthur Dapieve, um dos “ignorantes” que, como eu, Ariano Suassuna, Papa Francisco, Chico Buarque, Ken Loach e tantos outros, ama ou amaram o futebol, publicou na sua coluna no jornal O Globo, do dia 2/12, com a lucidez e o olhar certeiro que o caracterizam, uma crônica sob o título Minuto de Silêncio, em que destaca os laços imateriais que unem torcedores e jogadores e diz:

“Nem é preciso gostar de bola para se arrepiar com cenas que ocorrem dentro e em torno do gramado como se estivéssemos diante do coro dos escravos hebreus do ‘Nabucco’, de Verdi... O entusiasmo da chamada ‘Muralha amarela’, espaço para 25 mil pessoas torcerem de pé no estádio do Borussia Dortmund. A torcida do Liverpool cantando ‘You’ll never walk alone’, antes de cada partida.”

Aliás, um dos momentos mais emocionantes, entre os muitos de homenagem às vítimas do voo da LaMia, foi embalado por este hino.

Enfim, sempre foi mais que um jogo.