sábado, 15 de novembro de 2014

BAÍA DE GUANABARA – O Rio de Janeiro entre o PDBG e a Pedra da Moreninha (II)



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A barca segue, passa sob a ponte, e navega rumo à ilha de Paquetá. Essas águas guanabarinas são testemunhas de uma história de grandeza e miséria, de progresso e degradação, do embate entre civilização e cultura. Se no século XVIII a cidade era vista como o lugar da virtude e da cultura, o século XIX olha a cidade com espanto: lugar da desordem, doença, vícios. Mazelas que vêm do capitalismo.

Foto de Augusto Malta - 1906
Duas linhas de pensamento veem a cidade nesse momento, numa dualidade que segue até o século XX. De um lado, a busca pela CIVILIZAÇÃO, caracterizada pela modernidade, organização, crescimento econômico, embora, paradoxalmente, ainda conviva com a escravidão. De outro, a ideia de CULTURA, onde vicejam a diversidade, a vida cotidiana.

    Essa linha de ação civilizadora, no caso do Rio de Janeiro, se apoia particularmente numa ação policial. Como descreve Edmilson Rodrigues:


 Numa sociedade onde não foram construídos mecanismos de representação política e de cidadania, a distância existente entre as manifestações públicas do Estado e a forma de ordenamento da sociedade dá à polícia uma função civilizadora, definindo-a como intermediária entre a população urbana e o governo. (RODRIGUES, 2009, p.89).

                                   

Mas a literatura vai representar uma vanguarda que vê outras possibilidades e nuances na cidade. A cidade revela suas múltiplas faces obra de Machado de Assis e de João do Rio, seja na vida privada, doméstica, cercada pelas paredes da casa, seja porta afora, na “alma encantadora das ruas”. Esses intelectuais estão mais ligados à ideia de Cultura do que de Civilização.

Mais uma vez recorro a Pechman, para quem o embate entre cidade e processo civilizatório representou uma fonte onde a literatura e as artes em geral foram se abastecer:


Norbert Elias no seu O Processo Civilizador nos ensina que, segundo Mirabeau, o que se considera ser civilização não se confunde com suavização das maneiras, urbanidade, polidez ou decoro. Tudo isso parece a Mirabeau — assinala Elias — ser apenas a máscara da virtude e não sua face. A civilização nada faz pela sociedade se não lhe dá a forma e a substância da virtude. (PECHMAN, 1999).


        Em suas “Cidades Invisíveis”, Ítalo Calvino também coloca o discurso, as histórias, as narrativas, acima da cidade em si e das atividades que nela se operam. No texto “As cidades e as trocas”, Calvino nos revela:



Não é apenas para comprar e vender que se vem a Eufêmia, mas também porque à noite, ao redor das fogueiras em torno do mercado, sentados em sacos ou em barris ou deitados em montes de tapetes, para cada palavra que se diz – como “lobo”, “irmã”, tesouro-escondido”, “batalha”, “sarna”, “amantes” – os outros contam uma história de lobos, de irmãs, de tesouros, de sarna, de amantes, de batalhas. E sabem que na longa viagem de retorno, quando, para permanecerem acordados bambaleando no camelo ou no junco, puserem-se a pensar nas próprias recordações, o lobo terá se transformado num outro lobo, a irmã numa irmã diferente, a batalha em outras batalhas, ao retornar de Eufêmia, a cidade em que se troca de memória em todos os solstícios e equinócios. (CALVINO, 2003, p.40).



A relação do homem com a palavra, as línguas, as histórias vai além do que é inteligível, da razão. A escrita é movida pela relação com o mundo informe e caótico que preexiste ao nosso mundo de adultos, nos diz Mia Couto (2011, p.12). Há um idioma que experimentamos e que existe não para ordenar, explicar aquilo que não é ainda passível de ser compreendido, apreendido, mas comunicá-lo sim, de outro modo que transcende as línguas faladas e escritas conhecidas. O escritor, segundo Mia Couto, acessa esse idioma na sua tarefa - impossível, diz ele – de traduzir os sonhos, de suspender o tempo.

       A literatura talvez tenha o papel de suavizar o esforço do homem moderno para se adaptar à vida nas grandes cidades, crendo que pode preservar sua individualidade e autonomia. Esforço este comparado por Simmel (2005) à luta do homem primitivo pela sobrevivência.

Na literatura brasileira, doçura e rudeza, malícia e ingenuidade, maciez e aspereza, se revezam em obras que caracterizam suas fases, do romantismo ao realismo. A cidade, com suas doses de ternura e violência, pulsa em “O Cortiço” (1890), de Aluisio Azevedo, nas aventuras das “Memórias de um Sargento de Milícias” (1854) de Manuel Antônio de Almeida, nos dramas de “O Atheneu” (1888) de Raul Pompéia, desliza sorrateira pelos olhos e falas dos personagens de Machado de Assis (1839-1908). E flui no cotidiano observado por Paulo Barreto, o João do Rio (1881-1921).



 REFERÊNCIAS

CALVINO, Ítalo. As cidades e as trocas1. In: CALVINO, I. As cidades invisíveis. Rio de Janeiro: O Globo, 2003, pp.40-41.



PECHMAN, Robert Moses. Pedra e discurso: cidade, história e literatura. Revista Semear no.3 Rio de Janeiro, 1999. Disponível em: http://www.letras.puc-rio.br/catedra/revista/3Sem_06.html



RODRIGUES, Antonio Edmilson M. História da Urbanização no Rio de Janeiro. A cidade capital do século XX. In: CARNEIRO, Sandra e SANT’ANNA, Maria Josefina (orgs.). Cidade: olhares e trajetórias. Rio de Janeiro: Garamond/Faperj, 2009.



SIMMEL, Georg. As grandes cidades e a vida do espírito (1903). Mana vol.11 no.2. Rio de Janeiro, outubro 2005



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