segunda-feira, 10 de novembro de 2014

BAÍA DE GUANABARA – O Rio de Janeiro entre o PDBG e a Pedra da Moreninha (I)




“Estácio de Sá reconheceu que a expulsão dos franceses do

Rio de Janeiro não era questão de pouco mais ou menos, e como trazia

a incumbência gloriosa de fundar uma cidade que dominasse a majestosa

baía, desembarcou junto do Pão de Açúcar, e na bela praia, que durante

algum tempo se denominou de Martim Afonso e depois ficou sendo

chamada Praia Vermelha, lançou, no ano de 1565, os fundamentos de

uma cidade a que deu o nome de São Sebastião do Rio de Janeiro.”

(Joaquim Manuel de Macedo, 1862)


Ilha do Gato, atual Ilha do Governador


A barca desliza sobre as águas da Guanabara. O ronco do motor é um ruído monótono. Caravelas singraram estas águas, ou outras águas nestas mesmas águas. Como saber se aquelas moléculas, átomos são outros ou os mesmos, já que nada se cria, nada se perde?

O aspecto das águas certamente não é o mesmo. Há de se supor que eram límpidas no século XVI e mesmo nos que se seguiram. Refletiam o céu e o verde que adornava o contorno da baía. Baía sem nome. Nem Guanabara, nem boca banguela[1].

Elmo Amador, geógrafo, geólogo e ambientalista, e profundo conhecedor da Baía de Guanabara, descreve de modo irretocável o processo pelo qual passou – e passa ainda – essa região.


“Navegar na Guanabara é mergulhar num passado mágico. É cruzar as mesmas águas singradas pelos Tupinambás e seus ancestrais, que em suas frágeis canoas e ubás, estabeleceram uma relação harmoniosa de sustentabilidade com a Guanabara. É percorrer os mesmos percursos feitos pelos galeões e caravelas e pelas chaluas impulsionadas pelos sofridos e fortes braços escravos. Em suas águas penetraram corsários e piratas saqueadores, travaram-se batalhas pela conquista das terras. Em suas águas frequentemente grandes manadas de baleias pariam seus filhotes no inverno. No interior e margens da baía lentamente se instalaram diversos ecossistemas periféricos que asseguravam uma elevadíssima produtividade biológica, que sustentou os povos, que acompanharam as graduais modificações ambientais sofridas pela baía desde sua formação. Navegar pela Guanabara é ter a mesma emoção de êxtase dos visitantes naturalistas que a conheceram e a decantaram em prosa e verso.

As qualidades da Guanabara foram também a sua perdição. A água abrigada, a facilidade de acesso ao interior através de suas águas e rios e as riquezas de suas matas atraíram a cobiça dos europeus que aqui se instalaram e construíram uma cidade colonial, que para se desenvolver soterrou brejos, lagunas, manguezais, restingas e matas, arrasou morros, modificou a geografia e finalmente envenenou as sua águas”. (AMADOR, 2003)

Tal como as barcas, saindo do cais da Praça XV, ou, quem sabe, de outro cais, a literatura nativa do Rio de Janeiro se aventurou pelas águas da Baía de Guanabara. Um suposto trajeto a levou à Ilha de Paquetá, que se convencionou ser o cenário do romance de Joaquim Manuel de Macedo, “A Moreninha”. Se ainda hoje Paquetá guarda um ar bucólico, com charretes e ruas de terra, em 1844, ano da publicação do romance de Macedo, com suas praias e matas idílicas ela era o contraponto ideal para a agitação da cidade. E para o estilo de Macedo, ao gosto das donzelas da época.

A literatura e a cidade parece se alimentarem reciprocamente, uma provocando a outra, e outra apaziguando[2] a primeira. Robert Pechman diz que a pedra não faz a cidade e que sobre a “rudeza da pedra”, da cidade concreta - e muitas vezes hostil – impôs-se a “maciez do discurso”, das histórias, das narrativas. Ele afirma que:

a literatura teve papel decisivo na transformação da cidade de fato estético em fato histórico. Estou sugerindo que as imagens construídas pela literatura, da cidade, transformaram-se em repertório da própria cidade pelas mãos dos leitores. Ou melhor, as imagens ficcionais da cidade se transformaram numa chave a destrancar os insondáveis mistérios de uma cidade que não se revelam à simples observação. (PECHMAN, 1999).


Em seu texto, Pechman cita Carl Schorske para quem “a partir do século XVIII as cidades são definidas a partir de três caracterizações: a cidade como virtude, a cidade como vício e a cidade além do bem e do mal.” (PECHMAN, 1999).

Nas últimas décadas do século XIX, a cidade do Rio de Janeiro experimentou grandes transformações, como observa Edmilson Rodrigues (2009). Vários elementos levaram a uma nova configuração da sociedade carioca: aumento da população e da industrialização, especialmente no setor têxtil; crescimento das atividades econômicas, com destaque para os serviços; o surgimento de um mercado de trabalho livre. Há maior circulação de pessoas, crescimento do setor de transporte público e também da construção civil. Diz Rodrigues:
As alterações no espaço urbano acabam por estabelecer novas formas de relacionamento social, surgem novos hábitos, outros comportamentos, ampliando a diversidade social e as tensões resultantes do pouco espaço de participação política. Também a violência e os índices de criminalidade aumentam, ganhando relevo no cotidiano da cidade. (RODRIGUES, 2009, pp.87-88).

A barca segue, passa sob a ponte, e navega rumo à ilha de Paquetá....


REFERÊNCIAS:



AMADOR, Elmo. Sugestões de roteiros a serem percorridos por embarcação na Baía de Guanabara – Projeto Educação Ambiental do PDBG, 2003



MACEDO, Joaquim Manuel de. Um passeio pela cidade do Rio de Janeiro (1862). Edição do Senado Federal, vol.42, 2005. Em domínio público. http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/sf000070.pdf



PECHMAN, Robert Moses. Pedra e discurso: cidade, história e literatura. Revista Semear no.3 Rio de Janeiro, 1999. Disponível em: http://www.letras.puc-rio.br/catedra/revista/3Sem_06.html



RODRIGUES, Antonio Edmilson M. História da Urbanização no Rio de Janeiro. A cidade capital do século XX. In: CARNEIRo, Sandra e SANT’ANNA, Maria Josefina (orgs.). Cidade: olhares e trajetórias. Rio de Janeiro: Garamond/Faperj, 2009.




[1] O antropólogo Claude Lévi-Strauss, quando em viagem ao Rio de Janeiro, se disse surpreso com a Baía de Guanabara, que lhe pareceu uma boca sem dentes. Caetano Veloso resgatou essa imagem de “boca banguela” na música “O Estrangeiro”. http://letras.mus.br/caetano-veloso/44757/


[2] Flavia Cesarino Costa, em “O Primeiro Cinema”, fala de uma “certa mágica pacificadora da narrativa”, que veio transformar o cinema em seus primórdios. Por apresentar imagens que surgiam e desapareciam abruptamente, os primeiros filmes eram acusados de provocar uma sensação anárquica que estimularia um “nervosismo insalubre” (COSTA, Flavia C.. O primeiro cinema: espetáculo, narração, domesticação. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2005, p.33)

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