segunda-feira, 24 de novembro de 2014

BAÍA DE GUANABARA – O Rio de Janeiro entre o PDBG e a Pedra da Moreninha (III)



Navegando pela Baía de Guanabara, percebe-se como, alguns séculos depois das caravelas, o processo de civilização nos trouxe conquistas, mas também destruição. Em suas águas poluídas e turvas misturam-se o lixo e toda sorte de dejetos que a insensatez, ambição e preguiça humana despejam na Baía de Guanabara.

Poluição na Baía de Guanabara - outubro 2014
Este recanto, um recorte no litoral do Estado do Rio de Janeiro, retrata bem a história de uma cidade, ou mesmo de um país, sempre oscilando entre a “beleza e o caos”[1]. Falando das contradições que permeiam nossa história, Gilberto Velho cita o Programa de Despoluição da Baía de Guanabara (PDBG) como exemplo do reflexo das ações humanas, sejam de políticos ou não, sobre o meio em que se vive:

 Mas a enorme riqueza, o extenso território e o potencial do país produzem situações paradoxais quando, ao lado de avanços político-sociais, permanecem ativos os mecanismos de corrupção e manipulação dos recursos públicos. Grandes obras são realizadas através de negociatas que, frequentemente, inviabilizaram projetos importantes. No caso do Rio de Janeiro, o exemplo do plano de despoluição da baía de Guanabara é dos mais melancólicos. A administração pública em geral, apesar de méritos setoriais, apresenta imagem de ineficiência e falta de empenho. A solução autoritária, de direita ou de esquerda, está sempre no horizonte como panacéa para curar os males nacionais, apesar das calamitosas experiências no passado. (VELHO, 2007, p.20)



Embora integrada à cidade – já teve vários portos, como Porto da Pedra, Porto da Madama, Porto das Caixas, Mauá, e outros – e com tantas qualidades e belezas, a Baía de Guanabara não mereceu dos governantes, e nem da população em geral, os cuidados necessários para sua preservação. Os sucessivos planos de urbanização/modernização da cidade não a privilegiaram.

Pereira Passos, apesar de entrar para a história da cidade rotulado como o responsável pelo bota-abaixo (1903-1906), tinha uma visão para além da simples modernização/higienização da cidade. Seu projeto, ainda que de modelo civilizatório, não deixava de contemplar a cultura. Passos preocupou-se em integrar o mar à cidade, como descreve André Nunes de Azevedo:



A reverência de Pereira Passos para com a tradição da cidade expressou se também no respeito à constituição natural do Rio de Janeiro e sua ligação história com o mar. No segundo relatório da Comissão de Melhoramentos da Cidade do Rio de Janeiro, Passos projeta uma avenida à beira-mar que, seguindo a sinuosidade natural do litoral da cidade, preencheria-o, desde São Cristóvão à praia de Botafogo, buscando assim integrar o mar à urbe, ao mesmo tempo que a tornava mais convidativa aos seus visitantes, estrangeiros, que chegavam pelas águas da Baía da Guanabara. (AZEVEDO, 2003, p.47).


   Mas a Baía em si não era objeto de maiores considerações, embora tenha tido sempre um tráfego intenso. O Plano Agache (1926), como observa Vera Rezende, orientado por uma visão estética, pensou a Baía de Guanabara como porta de entrada dos visitantes estrangeiros. Ou seja, importava mais agradar aos turistas do que pensar nas condições dos habitantes.

     O Plano Dioxiadis (1964), segundo Rezende, preocupava-se mais com a eficiência do que a beleza, mas carrega também uma visão colonialista que busca modelos importados. Segundo a autora, o Plano é utópico, seja por não ter vínculos com a realidade nacional, seja por não levar em conta fatores ligados aos custos e também de ordem política.

Cargueiro fundeado na Baía - globalização
        Berço da cidade, a Baía de Guanabara é também seu relicário, onde ainda há joias como a Ilha Fiscal e as fortalezas, belas, ainda que guardem tristes memórias. E é também o espelho onde a cidade se reflete. Por ela pode-se ir ao sossego de Paquetá, por sua barra passam navios de muitas bandeiras, trazendo e levando as mercadorias que a “civilização” exige. Fundeados para além da ponte Rio-Niterói, são montanhas de aço que, sobre as águas, parecem ter uma especial delicadeza.

            No livro de Joaquim Manuel de Macedo, a viagem pelas águas da Guanabara rumo àquela não nominada ilha é descrita assim:



Ilha de Paquetá vista de um voo rumo ao Nordeste - 2012
e, enquanto seu batelão se deslizava pelas águas, rápido como uma flecha pelos ares, ele o acusava de pesado, de vagaroso; tinha há muito descoberto a ilha de... e; os objetos foram pouco a pouco se tornando mais e mais distintos; viu a casa, viu o rochedo em que outrora a tamoia deveria ter cantado seus amores e de sobre o qual cantara, há oito dias, D. Carolina a sua balada; depois distinguiu sobre esse rochedo negro um ponto, um objeto branco, que foi crescendo, sempre crescendo, que enfim lhe pareceu uma figura de mulher, que ostentava a alvura de seus vestidos. Depois ele tinha desviado um pouco os olhos; quando os voltou de novo para o rochedo, a figura branca havia desaparecido como um sonho. (MACEDO, p.83).



 Ainda que não se deva “confundir uma cidade com o discurso que a descreve”, como nos alerta Calvino (2003, p.61), eles guardam uma relação entre si, e mesmo quando aquele fala de “palácios de filigranas” há por trás “uma nuvem de fuligem”. A cidade comporta tudo e tudo é matéria-prima para a literatura, o cinema, as artes, enfim.

Vista do alto da Pedra da Moreninha
 A barca chega a Paquetá. A paisagem é bela, mas as águas já não são convidativas para um banho de mar. A pedra da Moreninha está lá, vigilante, como se para lembrar a quem chega, vindo do caos urbano, que uma cidade pode conter várias histórias e deixar-se levar por elas é um antídoto contra a rudeza de outras pedras, esculpidas pelo homem, de aço e concreto.

Referências: 

AZEVEDO, André Nunes de. A reforma Pereira Passos: uma tentativa de integração urbana. Revista Rio de Janeiro, no.10, maio-agosto 2003.

CALVINO, Italo. As cidades e os símbolos 5. In: CALVINO, I. As cidades invisíveis. Rio de Janeiro: O Globo, 2003, pp.61-62.
MACEDO, Joaquim Manuel de. A moreninha (1844). Ministério da Cultura. Fundação Biblioteca Nacional. Em domínio público: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bn000008.pdf
REZENDE, Vera. Planejamento urbano e ideologia. Quatro planos para a cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1982.  
VELHO, Gilberto. Metrópole, cultura e conflito. In: VELHO, G. (org.) Rio de Janeiro: cultura, política e conflito. Rio de Janeiro: Zahar, 2007. 





[1]Música cantada por Fernanda Abreu, Rio 40 graus. http://letras.mus.br/fernanda-abreu/580/

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