quinta-feira, 19 de setembro de 2013

ENCONTROS COM DELEUZE, Gilles (1)



Pensamento e Sociedade de Controle



No livro “Conversações” (que reúne entrevistas, cartas e ensaios), o filósofo francês Gilles Deleuze (1925-1995) diz que a Filosofia não trava guerra com potências: faz guerrilhas, mantém conversações. Para ele, Estado, capitalismo, TV, religiões, são potências. Potências não são apenas exteriores, passam por cada um de nós e é graças à filosofia que cada um mantém conversações e guerrilha consigo mesmo.

Sobre Michel Foucault, Deleuze destaca seu espírito guerreiro, afirmando que pensar é um “ato arriscado”, uma violência que se exerce primeiro sobre si mesmo. Foucault aventurou-se para fora do reconhecível e do tranquilizador, diz ele. E é duro com os críticos, afirmando que objeções são como bóias lançadas das margens pelos medíocres e preguiçosos, mais para confundir e impedir o avanço de quem se aventura a este terreno instável e potencialmente perigoso. Deleuze não confina o pensamento no campo da teoria. Para ele, o pensamento é vivo, é vida!

No capítulo “Post-Scriptum sobre as sociedades de controle”, texto de 1990, Deleuze analisa as mudanças no modo de organização e controle social. Nas sociedades disciplinares dos séculos XVIII, XIX e chegando às primeiras décadas do século XX, o indivíduo vai passando de um espaço fechado a outro: família, escola, caserna, fábrica e outros eventuais (hospital, prisão). Especialmente nas fábricas há controle do tempo e do espaço.
Na nova configuração do século XX, há a tentativa de se reordenar os espaços de confinamento, mas estes estão fadados a desaparecer, a dar lugar a novas conformações. Surge então a SOCIEDADE DE CONTROLE. Do confinamento para espaços abertos, mais livres. Deleuze não qualifica como melhor ou pior, mas sugere que se deve buscar novas armas para lidar com esta nova situação.
A empresa substitui a fábrica, as relações se dão numa outra dinâmica. Na fábrica se buscava uma unidade, os indivíduos como massa, vigiada pelo patrão e mobilizada pelo sindicato. Mais alto rendimento e mais baixo salário. Na empresa, a estratégia é fomentar a rivalidade, a competição, como estímulo ao crescimento profissional, melhor salário, prestígio (poder).
Deleuze entende que as sociedades de disciplina/confinamento funcionam como “moldes” e o indivíduo vai passando de uma a outra, sempre recomeçando, sendo “moldado”. Já na sociedade de controle há uma “modulação” permanente, nunca termina. Isto se dá inclusive na Educação, aonde a escola e o exame vão sendo substituídos pela “formação permanente” e um controle contínuo. Para Deleuze, este é o “meio mais garantido de entregar a escola à empresa”.

Ele entende que o que melhor distingue um tipo de sociedade de outra é o dinheiro. Nas sociedades disciplinares o dinheiro referia-se a algo palpável, concreto, o ouro. Nas de controle, o que há são “trocas flutuantes, modulações que fazem intervir como cifra uma percentagem de diferentes amostras de moeda”. As crises econômicas que vêm varrendo diversos países neste começo de século demonstram bem esta fragilidade, esta volatilidade.


Deleuze estabelece ainda uma comparação utilizando as características de dois animais: a toupeira, escavando seus buracos, representa a sociedade disciplinar, de confinamento, enquanto a sociedade de controle, com espaços abertos e aparente liberdade, é representada pela serpente, com seus anéis.

O filósofo analisa ainda as máquinas de cada época e os modos de produção. As máquinas simples, de roldanas, alavancas, das sociedades soberanas, deram lugar a máquinas energéticas, com seus motores, nas sociedades disciplinares. Agora, temos os computadores. Quanto mais sofisticadas, mais suscetíveis a perigos, da sabotagem à introdução de vírus. “Não é uma evolução tecnológica sem ser, mais profundamente, uma mutação do capitalismo”, diz ele.

Se o capitalismo do séc. XIX se materializava nas fábricas, tinha por objetivo a produção e se caracterizava pela propriedade, hoje seu alvo e sua estratégia são outros. A produção foi relegada ao Terceiro Mundo onde a mão de obra barata – e não raro, em condições de escravidão – é farta. Um capitalismo de sobre-produção, que quer vender serviços e comprar ações. Mesmo a arte não escapa a esta nova configuração das relações de produção/consumo na sociedade. Um território onde a corrupção encontra campo fértil para se estabelecer e procriar.  Para ele, “O marketing é agora o instrumento de controle social, e forma a raça impudente de nossos senhores”.


Mas há um aspecto que se mantém: o contingente de excluídos “pobres demais para a dívida, numerosos demais para o confinamento”. E Deleuze alerta: “o controle não só terá que enfrentar a dissipação das fronteiras, mas também a explosão dos guetos e favelas.”


Reportando-se ao psicanalista Félix Guattari (com quem escreveu “O Anti-Édipo”) , Deleuze fala da cidade compartimentada por barreiras eletrônicas. Para transpor essas barreiras, o cidadão recorreria a um cartão magnético que lhe daria – ou não – acesso a determinados espaços. O que Deleuze destaca é que o impedimento de acesso não é a barreira em si, mas o computador que controla a posição de cada um, permitindo ou não que ele circule. O autor considera frágeis os exemplos que usa quanto aos mecanismos desta sociedade de controle – nos regimes das prisões, das escolas, dos hospitais, das empresas – mas entende que é preciso avaliá-los, categorizá-los, para que melhor se compreenda este novo regime de dominação. O regime da serpente é mais complexo do que o da toupeira, diz ele.

Ele destaca a atuação dos sindicatos, historicamente ligados às lutas dos trabalhadores, e coloca uma questão: irão eles se adaptar ou, ao contrário, criar novas formas de resistência, capazes de combater as “alegrias do marketing”? E aos jovens sugere que reflitam sobre a finalidade da formação permanente e a qual poder estão sendo motivados a servir.

Entre aqueles que, desde junho, tomaram as ruas de várias cidades é certo que alguns mais que outros estejam conscientes dessa necessidade de reflexão e, assim, mais aptos a questionar e enfrentar a serpente.

DELEUZE, Gilles. Conversações. São Paulo: Editora 34, 1992 (reimpressão 2008)


terça-feira, 3 de setembro de 2013

ENCONTROS COM BENJAMIN, Walter (3)



MELANCOLIA DE ESQUERDA: A propósito do novo livro de poemas de Erich Kästner



Neste texto de 1930, WB fala de uma camada social que ascendeu economicamente e que gosta de expor essa condição. Trabalham para si mesmos (ao contrário dos magnatas das finanças que trabalham para as famílias) e com perspectivas de curto prazo. WB refere-se a esta essa camada intermediária, encravada entre os despossuídos e os industriais, para fazer uma ácida crítica aos poemas de Kästner*.

Diz WB que aqueles poemas alcançam apenas tal camada intermediária. Seus “acentos rebeldes” não chegam aos despossuídos e nem sua ironia atinge os industriais: “Sua função política é gerar cliques, e não partidos, sua função literária é gerar modas e não escolas, sua função econômica é gerar intermediários e não produtores”.

WB acredita que essa “inteligência de esquerda”, que, desde as duas décadas anteriores, vinha sendo agente de todas as conjunturas intelectuais, não conseguiu alcançar uma significação política consistente, uma vez que converteu os “reflexos revolucionários” em “objetos de distração, de divertimento, rapidamente canalizados para o consumo”.



Para WB, os poemas de Kästner não dão oportunidade à crítica e ao conhecimento, pois estes são “estraga-prazeres” e a intenção do poeta é apenas a autofruição, sendo a luta política esvaziada. Assim, tais poemas encontram seus leitores entre as pessoas de alta renda, “fantoches tristes e canhestros”, que, através de leituras desse tipo, tentam se reconciliar consigo mesmos, gerando assim a identidade entre vida profissional e vida privada que chamam de humanidade. Contudo, para WB esta é uma tarefa impossível, pois, nas condições da época, tal humanidade só poderia existir na tensão entre esses dois pólos, gerando reflexão e ação. Ao contrário de Kästner, Brecht, sim, alcançaria essa dimensão em sua obra.










"Toda a vida das sociedades nas quais reinam as condições modernas de produção se anuncia como uma imensa acumulação de espetáculos. Tudo o que era diretamente vivido se esvai na fumaça da representação" (Guy Debord)





Não conheço os poemas de Kästner, nem leio alemão, mas uso aqui a crítica de WB para pensar outra dicotomia, hoje, entre vida pública e vida privada. As fronteiras entre estas duas esferas vêm se diluindo, ou já o fizeram. Contudo, não me parece que isso signifique autenticidade, transparência, o indivíduo expondo ao mundo o que é na sua essência, sem as máscaras que a sociedade impõe ou que adota por conta própria. Ao contrário, a percepção que frequentemente tenho é que essas máscaras, longe de caírem, assumem novos formatos na vida pública/privada e são expostas, especialmente, nas redes sociais. Lembrou de A sociedade do espetáculo, de Guy Debord? É por aí mesmo.



A tensão, por isso, não acontece e, por conseguinte, nem a ação ou a reflexão. Se alguns indivíduos querem apenas exposição, a outros não interessa confrontar sua vivência pessoal e sua atuação social. Seguros de sua sabedoria, esperteza e superioridade, não cogitam a possibilidade de rever conceitos, de abrir-se a novas interpretações do mundo, de ver/ouvir o outro.

Certamente, tal comportamento não é “privilégio” das últimas gerações, mas as novas tecnologias de comunicação, aliadas a um sistema onde as leis de mercado são soberanas, por certo elevaram a altíssima potência a possibilidade de exibição daquelas “inteligências de esquerda” (ou de direita ou de centro ou autodenominadas antipolíticas), raivosas e prontas para desqualificar quem os questione, fechando seus ouvidos e teclados ao diálogo.



* No livro Ein Mann gibt Auskunft.