quarta-feira, 20 de novembro de 2013

“TRAZ A PUREZA DE UM SAMBA...”



Chegando da missa de sétimo dia de Delcio Carvalho, na Igreja Matriz N.S.da Glória, no Largo do Machado (uma bela e comovente celebração), me vem à memória a entrevista que fiz com ele, num distante 1999, logo após um show no Teatro Glaucio Gill, em Copacabana. Transcrevo aqui, em homenagem ao poeta e compositor.

DELCIO CARVALHO: UM CONVITE AO SAMBA E À POESIA

De vida são 60 anos, de carreira 40. Como a melhor maneira de celebrar a música é cantando, Delcio Carvalho vem reunindo, ao longo deste ano, parceiros e amigos de samba em shows por diversas cidades. Depois de uma temporada de sucesso no Teatro Rival, no centro do Rio, o compositor estreou no dia 20 de outubro, ao lado de Ivor Lancelotti, no Teatro Glaucio Gill, em Copacabana. A cada semana um convidado se junta à dupla e o resultado é  samba da melhor qualidade.

Delcio Carvalho começou a trilhar o caminho da música ainda menino, em Campos, norte fluminense, onde o pai tocava sax de marcação numa banda e em blocos de Carnaval. O garoto, que foi cortador de cana, iniciou o aprendizado musical com o flautim mas, rebelde,  preferiu as curvas e a harmonia do violão e foi atrás de seu sonho, para “de uma vez tomar o seu lugar”.

Em 1955, aos 16 anos, rumou para o Rio de Janeiro onde teve o privilégio de aprender ouvindo Ataulfo Alves, Wilson Batista e Ismael Silva, mestres que, sem dúvida, se orgulhariam de vê-lo hoje. Quando Maria Bethânia e Gal Costa cantaram “Sonho Meu”, parceria de Delcio com Dona Ivone Lara, não houve quem ficasse indiferente. Aqueles versos - “sonho meu, sonho meu, vai buscar quem mora longe...”- realmente trouxeram o sucesso, o primeiro grande sucesso. E outros se seguiram. A lista de intérpretes que gravaram as composições de Delcio e seus parceiros é longa e pontilhada de estrelas como Nana Caymmi, Elizeth Cardoso, Beth Carvalho, Zeca Pagodinho, entre tantos outros, além dele próprio que, com sua voz suave, é também um cantor que toca o coração de quem o ouve.

Hoje, depois de muita luta e perseverança, aquela trilha iniciada lá no interior do Estado do Rio se alargou, alcançando o brilho de uma avenida iluminada por onde desfilam belos sambas, belas poesias.

REPÓRTER: Como foi sua mudança de Campos para o Rio de Janeiro?

DELCIO CARVALHO: Quando eu vim para o Rio já era cantor de orquestra, da noite, fazia bailes. Cantava na Rádio Cultura de Campos, já tinha lançado uma música como compositor. No Rio, depois do serviço militar, consegui participar do programa Trem da Alegria na Radio Mayrink Veiga, com Yara Salles e Lamartine Babo. Cantei “Molambo”, com o Manoel da Conceição tocando violão; isso foi 1956. Mas uma apresentação na rádio não significava nada e comecei então a batalhar por aquilo que eu queria. Foi um caminho de muita luta. Morava no Morro do Querosene, com meu tio Herval; trabalhei num botequim na Quinta da Boa Vista, que existe até hoje, trabalhei à noite numa pensão no Catete. Passei a me inscrever para outros programas de calouros nas Rádios Nacional, Guanabara, Mauá.

R: O que você considera ter sido determinante para você ter abraçado o samba? O fato de ter um pai músico, a convivência com os sambistas?

DC: Influências a gente sempre tem, mas tive a certeza de que essa era a minha estrada ouvindo aquele pessoal da antiga, que ouço até hoje: Noel Rosa, Wilson Batista, Ataulfo Alves. O que eu queria era fazer um apanhado deles todos.

R: Geralmente se associa o samba ao Rio de Janeiro. Você esteve recentemente fazendo shows em São Paulo. Como é cantar na terra da garoa, você é bem conhecido por lá?

DC: Eu não sou conhecido por lá, mas minhas músicas são. O shows têm bom público, o pessoal canta e pede músicas de que eu até já nem me lembro mais. Acho que é uma coisa da cultura musical da região. Numa excursão com o Projeto Pixinguinha pelo Nordeste a maioria das músicas era conhecida, as pessoas cantavam junto, mas não sabiam que eram minhas. O mesmo acontece em outros Estados como Maranhão, Pará, Amapá e outros. O público conhece músicas de vinte anos atrás.

R: Como é que o letrista Delcio trabalha?

DC: Não perco muito tempo em ficar bolando aquele poema mirabolante. O trabalho do letrista é semelhante ao do músico, é procurar uma identidade com a melodia para que tudo fique como uma coisa só.

R: As prateleiras das lojas estão cheias de CD’s de axé music, grupos de pagode e de música dita sertaneja que surgem da noite para o dia; o mesmo domínio se vê nas revistas, rádios e TV’s. Você acha que há um paralelo entre esta situação e a situação geral do país, onde se observa um descaso pelos valores nacionais, mais simples e autênticos?

DC: Depois da “Revolução” o país foi regredindo. Quando eu era garoto, e pobre, aprendia música na escola, tinha canto orfeônico, a gente cantava os hinos, Villa-Lobos fazia parte do governo.  Acabaram com tudo, até com os trens. Um ministro disse que o trem dava prejuízo. Eu morei em Imbariê, Duque de Caxias (Baixada Fluminense) e naquela época o trem saía religiosamente no horário. Hoje o trabalhador sofre para chegar no emprego e gasta muito mais com os ônibus. Esse atraso cultural que vemos hoje não é um fato isolado, está dentro de um contexto de descaso, de empobrecimento geral.

R: Vários eventos pipocam pela cidade do Rio de Janeiro em espaços alternativos como praças, bares e até quintais, onde se celebra o mais puro samba. Seriam focos de resistência e um sinal de que, por mais que trabalhem contra, a genuína música brasileira não vai se deixar vencer?

DC: Com certeza que sim. São pessoas, como por exemplo, Wilson Moreira, Nei Lopes, que ainda seguram... e não é um problema de “samba de raiz”, mas de música inteligente, de qualidade, forçando as pessoas a pensar, a entender. O Silas de Oliveira colocava uma palavra difícil no samba e se alguém criticava ele dizia que para isso havia o dicionário.

R: É uma questão de nivelar por cima e não por baixo, como vêm fazendo?

DC: Exatamente, tem que estimular, puxar para cima.

R: O artista entra na casa, e por que não dizer, a vida das pessoas. É alguém que tem espaço para dar o seu recado. Como você vê este lado da vida do artista, a responsabilidade de formar opinião, de influenciar? Você acha que o artista deva tomar uma posição política, dar o seu recado através de seu trabalho, como, por exemplo, na letra de uma música?

DC: Todo autor, seja de letra de música, de um livro, tem uma mensagem para passar, de acordo com sua vivência, com alguma lição que aprendeu. Ele tem de ter isso em mente e tem de passar adiante.

R: E as gravadoras? Seu CD “AFINAL” foi uma produção independente?  A gente pode esperar algum novo CD?

DC: O disco é de 1987, relançado em 1996, e a idéia era ser independente, mas foi encampado pela Leblon Records, que faliu. Estamos trabalhando, Ivor Lancellotti, Afonso Machado e eu, na produção de um CD para lançamento no início do próximo ano. Além disso, criamos, Bertha Nutels e eu, uma editora, a BEDEL porque precisamos defender nossos interesses, já que ficamos a mercê de quem manda no mercado, daquele que se julga o “dono” da música”. Eu fiz um samba chamado “Esperanças Perdidas” que está sub judice até hoje. O pessoal até já morreu, mas como a justiça é muito lenta o processo se arrasta. A “Sonho Meu”, parceira minha com a Ivone Lara, ia entrar num filme e aí eles queriam ficar com 50% mas nós não aceitamos. É um roubo oficializado. A editora é um recurso que temos porque há uma verdadeira máfia no meio editorial de música.. Por isso que muitos artistas brasileiros estão indo ganhar dinheiro no exterior.

R: Sua bem sucedida parceria com Dona Ivone Lara já é conhecida. Dela nasceram sucessos como “Sonho Meu”, “Chorei, Confesso”, “Foi Ela”; com Ivor Lancellotti você lançou pérolas como “Convite”. Outros “rebentos” já surgiram de parcerias não tão constantes, mas igualmente felizes. Com quem você tem trabalhado mais ultimamente? Alguém novo no pedaço?
DC: Tem o Afonso Machado que me deu uma melodia ainda na Copa do Mundo e eu só coloquei letra agora. Mas essa não é a primeira, temos “Ela e a Favela”, que está no meu CD. E tenho parcerias com Noca da Portela, Claudio Jorge, Jorge Simas. Tem o Paulinho de Caxias, grande parceiro, a Carlota Marques, o Alceu Maia e vários outros.

R: Terminando a temporada no Glaucio Gill você já tem outros shows em vista?

DC: Vamos fazer Campos, Espírito Santo. Estivemos num show para lançamento do CD do Movimento dos Sem Terra e um casal da Bahia ficou de agendar conosco uma participação numa feira que vai acontecer por lá, ainda este ano, onde vai ter de tudo. Devemos ir a Brasília também

R: Como foi participar do show com o pessoal do MST?

DC: Foi muito legal. É gente nova, determinada, com a mente aberta, com vontade de mudar as coisas. É sempre bom incentivar estas iniciativas.