quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

Sala Escura: A NEGOCIAÇÃO



Uma história sobre a sedução do poder e do que um respeitável homem de negócios é capaz de fazer mantê-lo. Richard Gere encarna o executivo Robert Miller, papel que lhe cai muito bem, espantando para longe o estereótipo de bom-e-belo-moço.



O bem sucedido, exemplar, pai de família Miller é ele próprio um personagem, representando constantemente, num teatro onde altas cifras movimentam cada cena. Tudo em sua vida é perfeito, correto, desde os assépticos escritórios aos jantares em família. Tudo funciona como uma engrenagem sobre cujo funcionamento Miller acredita ter total controle.



Mas, mesmo para um homem poderoso como Miller, a vida pode trazer surpresas que vão obrigá-lo a tomar atalhos, desvios, fugindo de sua trajetória milimetricamente programada. Um paralelo com a situação da economia mundial, aparentemente sólida em alguns países, mas cujas bases frágeis têm sido ultimamente expostas, denunciando um sistema não tão confiável como a mídia nos apresenta. Evocando o velho Marx, tudo que é sólido ameaça desmanchar no ar.



Um acidente de carro e a morte da amante desequilibram o esquema programado por Miller e ameaçam uma bilionária negociação prestes a ser fechada.  Afinal, ele não tem o controle sobre tudo, como imagina. Para retomar este controle, Miller lançará novas cartadas, envolvendo na trama pessoas de fora do elegante círculo onde transita. Nesse jogo de aparências, onde tudo pode ser usado contra ou a favor, pessoas que se acostumaram a ser apenas a sombra do vitorioso e respeitado executivo, irão surpreendê-lo, como aprendizes que superam seus mestres.



Na trilha sonora, João Gilberto embala os encontros de Miller com a amante (Laetitia Casta). Susan Sarandon conduz com elegância e confiança o papel de esposa perfeita e Tim Roth é um investigador hábil em conquistar a cumplicidade do espectador. O jovem Nicholas Jarecki mostra competência nesse seu primeiro longa, vamos ver o que nos trará em seus próximos trabalhos.




A Negociação (Arbitrage)


Polônia/EUA, 2012, 107 min.

Direção: Nicholas Jarecki

Classificação: 14 anos (Violência, drogas ilícitas)






terça-feira, 18 de dezembro de 2012

DIÁRIOS DA PARAÍBA (3): Fique calmo...



A melhor tradução do jeito “keep calm” de ser eu fiquei conhecendo no taxi, indo pro aeroporto de João Pessoa. Observei que a operadora do rádio, que transmite aos motoristas as instruções sobre as corridas solicitadas, não se limitava a dar os dados dos passageiros, local, essas coisas. Ela conversava, docemente com eles, ainda que com frases curtas.

De início achei que o taxista estava ouvindo algum programa de rádio, mas logo me dei conta que não era isso. Perguntei-lhe, então, se aquilo que eu estava ouvindo era o que eu estava imaginando. Ele, muito entusiasmado, me contou sobre a funcionária, querida por todos os motoristas, que os anima durante a dura jornada de trabalho pelas ruas e estradas (o aeroporto, por exemplo, fica em outro município), levando e trazendo gente de todo lugar.

Os taxistas, me contou ele, ficam ansiosos para que chegue o turno da tal funcionária. Havia um carinho verdadeiro nas palavras daquele homem. A tal moça (esqueci seu nome...), continuava ele, não apenas os ajuda a vencer o dia, com sua conversa informal, mas os tranqüiliza, dá força àqueles que enfrentam problemas. Ela sabe, por exemplo, quem está com a mãe doente, quem está mais cansado e os anima e reconforta.

Esta incrível e improvável funcionária de uma cooperativa de taxis da Paraíba, transmite um estímulo que só o afeto pode passar. Estabelece uma vinculação, mais do que mera conexão (lembrando aqui o professor Muniz Sodré). Uma prova simples e inegável de que as máquinas são o que as pessoas fazem delas e/ou com elas e que a sociabilidade, os vínculos, podem se estabelecer nos espaços e dos jeitos mais inusitados.

Quando voltar a João Pessoa, vou tentar reparar meu erro e resgatar o nome esquecido e, quem sabe, até conhecer pessoalmente esta doce, generosa e decidida “paraíba masculina mulher-macho sim senhor”.


 

PS: Pantim é puro paraibês e pode significar “frescura”, chilique”, algo por aí. Segundo apurei com fontes confiáveis (a vendedora, paraibana da gema), as crianças crescem ouvindo das mães: “deixe de pantim!”. E não é que até achei o verbete num dicionário informal?

domingo, 16 de dezembro de 2012

À FEIRA, LIVRE



Os cheiros da feira lhe entravam pelas narinas e, num ritmo um tanto alucinado, seu cérebro processava aquelas mensagens olfativas, provocando em sua mente uma sucessão de lembranças e sensações, ora claras, ora imprecisas. Muitas vezes percorrera aqueles corredores, aquela profusão de cheiros, cores e sons. Mas, neste dia, as melancias lhe pareceram mais sorridentes e as mangas a transportaram a outro tempo, tempo de infância. Sob o mangueiral, rostos, mãos e braços lambuzados, fiapos nos dentes. A terra úmida, tapete de folhas e jibóias serpenteando pelo chão e pelo tronco das árvores.
- Moça, quer limão aí? 
 
Seus olhos encararam o moleque que lhe estendia uma fileira de limões, aprisionados numa rede de fios de plástico. Mas ela não o via, ou melhor, via algo além daquela figura.

Por que a feira hoje se revelava tão diferente, tão especial? As cenouras e alfaces nunca estiveram tão vibrantes, as cebolas com tanto brilho, as frutas tão carnudas. A vida parecia gritar naquelas barracas, como gritavam os feirantes e camelôs, apregoando suas mercadorias. Sua cabeça girava num turbilhão, onde ecoava aquele vozerio, cintilava a luz refletida nas pétalas das flores, pulsavam as sensações despertadas pelos odores.

O dia anterior
 
- Nome, por favor.

- Aurora Vieira Lima.

- Qual o exame?

- Ultra-sonografia mamária.

- Queira aguardar um momentinho, por favor, senhora.

- Obrigada.

Aurora sentou-se enquanto esperava o resultado do exame, feito dias antes. Aquilo sempre fora uma rotina: ginecologista, coleta de material, exame colpocitológico; laboratório, mamografia, hemograma, ultra-sonografia transvaginal, mamária... mas, um pequeno caroço no seio, revelado durante o banho, trazia inquietação. E se fosse um câncer? Já se via no hospital, mastectomia, quimioterapia, cabelos caindo. Não que estivesse fazendo daquela espera um exercício de masoquismo, de sofrimento antecipado, mas a possibilidade, não a certeza, ainda, a colocava diante de uma situação que nunca havia imaginado. E se morresse? Quanto tempo ainda teria antes do dia fatal? Será que poderia ainda realizar alguns de seus planos, sonhos? Um sobressalto a fez estremecer por dentro. Planos? Sonhos? Quais? Teria algum? Iam seus planos além do quê preparar para o jantar ou de qual presente dar para a sogra no Natal ou ainda de qual saia vestir para ir ao trabalho? Guardaria ainda, num sótão empoeirado da alma, algum sonho de garota?
- Aurora Vieira. Aurora Vieira Lima!


A voz da recepcionista a arrancou de seus pensamentos abruptamente. Pegou o envelope lacrado, agradeceu e saiu para o hall. No elevador, do 13o andar ao térreo, retomou o fio daquelas reflexões. Nas mãos, o envelope que continha sua sentença, pensou, mais dramática do que realmente se sentia. 

O horário de verão retardava a noite e, apesar da hora, ainda havia luz num canto do horizonte. As ruas fervilhavam de gente apressada, pareciam todos padecerem de alguma moléstia contagiosa cujos sintomas eram grande agitação, entrar e sair de lojas, colecionar sacolas que as mãos mal conseguiam carregar. De vez em quando, paravam meio que hipnotizados diante de vitrines onde Papai Noel, renas e pinheiros, cercados de muito dourado e de luzes piscantes, garantiam felicidade a quem adquirisse os produtos ali expostos.



Já em casa, deixou o envelope sobre um móvel, na sala. Será que o marido ia reparar nele? Não. Chegou, como sempre, demonstrando cansaço, mais interessado no banho, no que tinha para o jantar ou no telejornal do que nela. Subitamente, Aurora sentiu-se como parte da mobília, apenas um elemento a mais na paisagem doméstica. No máximo, uma planta num vaso. Até a discreta decoração natalina, por não estar exposta ali todos os dias do ano, parecia ter mais destaque do que ela naquela casa. E o que era para ela aquela casa? Um lar? Tudo a sua volta, tão familiar, parecia um pouco estranho. Que afinidade tinha ela com aquelas coisas? O quanto elas preenchiam sua vida?



Como sempre, ela e o marido conversaram pouco. Ele reclamou que as laranjas haviam acabado, gostava de suco pela manhã, ela sabia! Aurora, como se desculpando, disse “amanhã é dia de feira. Passo lá antes de ir para o trabalho”. Ele perguntou se os meninos – dois adolescentes, em férias – haviam ligado. Sim. Ficariam em Saquarema até o dia 22, voltariam para o Natal. Perguntou-se então se eles voltariam por prazer de estarem com os pais ou por obrigação ditada pelo calendário que assinalava em vermelho as datas em que devemos ser alegres, solidários, felizes.


Custou a dormir e desta vez não era apenas o ronco do marido que afugentava seu sono. Por que não abrira ainda o envelope? Medo? Ou estava querendo alongar aquele exercício mental, aprofundar aquelas reflexões que lhe vinham tão espontaneamente? Por que nunca a assaltaram antes, aqueles pensamentos? Sua vida era tão “normal”, os dias se sucedendo sem sobressaltos, sem grandes problemas. Sem emoções. Adormeceu e sonhou com laranjas que ela tentava carregar, mas que insistiam em cair-lhe das mãos.


Na feira


- Dois é dez! Dois é dez! Vai aí, madame? fresquinho.


Passou por frutas de nomes exóticos, que nunca ousara provar, por verduras que não conhecia. Quanta novidade! Quanta vibração!  Os abacaxis reinavam com suas coroas, conscientes de serem presença obrigatória nas ceias tropicais. Apenas os peixes lhe pareceram tristes, com suas bocas convexas e seus olhos eternamente abertos. Mas, mesmo eles eram vida, carne suave e saborosa, amadurecida em oceanos que ela, repentinamente, desejou conhecer.

Passou também pelas laranjas, cuidadosamente empilhadas num desenho geométrico cuja arte só os feirantes conhecem. Encarou-as por alguns instantes, sorriu maliciosamente e seguiu adiante.

Pegou o ônibus que ia para Charitas, atravessou a ponte Rio-Niterói, foi almoçar em São Francisco, sem hora para voltar. 

Rio de Janeiro, 2003