sábado, 30 de abril de 2011

O AMANHÃ COMO UM LUGAR

Um poema de Emily Dickinson, em que a poetisa norte-americana busca saber “onde fica o lugar chamado amanhã”, nos leva a pensar sobre o tempo em que vivemos, de muita pressa, onde o presente esvai-se em grande velocidade e o futuro parece não existir. Vivemos sempre em expectativa, PRESENTE ao lado do FUTURO, e é preciso alguma sabedoria para equilibrar os pratos dessa balança-ampulheta. 

Viver o presente – carpe diem- - não significa esgotar este presente e recomeçar a cada dia, a partir do zero. Até porque, mesmo quando há perdas, não se parte do zero, há um aprendizado nas derrotas. Deve-se viver o presente como um movimento duplo, tal como os corpos celestes: um que gira sobre si (o pensar) e outro que avança (criação/transformação), de modo que o presente – que também será ontem e já foi futuro – não seja um fragmento isolado, uma peça sem encaixe adequado ao mosaico da existência, ainda que este encaixe precise ser encontrado nas tentativas de erros e acertos. 

Há um processo que ancora-se em memória, um processo que percorre a História. Viver o presente no sentido de não se deixar imobilizar pelos entraves do passado e não deslocar para o futuro os passos que nos levem à realização dos planos e sonhos que cultivamos. Se não há planos e sonhos, nem sentimento de algo a construir, uma contribuição à sociedade, a vida esvazia-se num mero subsistir opaco, pálido, desbotado e vazio. Essa contribuição não é necessariamente um feito extraordinário, tampouco precisa ter os “quinze minutos de fama” profetizados por Andy Wahrol. Como diz o poema da chilena Gabriela Mistral, nas pequenas atitudes do cotidiano há grandeza, generosidade, beleza que ajudam a transformar o mundo. Na Educação – entendida em toda sua amplitude - é onde repousam as esperanças, o próprio futuro. Um futuro que deve ser visto como “algo desejável e possível”, vencendo as incertezas destes tempos. 

 *Poema de Gabriela Mistral em http://recantodasletras.com.br/poesias/1820632 
*Foto: Parque das Aves - Foz do Igaçu

sábado, 16 de abril de 2011

ÁUREA, UMA PÉROLA

Há muitos anos assisti a um documentário sobre o Balé Bolshoi. Não lembro muita coisa, a não ser que era lindo e me emocionou. Mas me lembro de uma cena em que algumas bailarinas, crianças ainda, ensaiavam passos que aparentemente eram simples, mas o professor não se dava por satisfeito. Então ele fala algo mais ou menos assim: as coisas simples são as mais belas e também as mais difíceis.

Bem, talvez a frase tenha sido outra, mas o que estava em questão era a dificuldade de se realizar coisas simples e como estas são belas. Lembrei-me disso ontem, assistindo a uma pequena jóia chamada Áurea, um curta com jeito de documentário, que o diretor Zeca Ferreira garante que é um filme de ficção.
A proposta de Zeca é falar dos cantores que trabalham na noite, anônimos, mas capazes de fazer de cada noite um espetáculo único, sensíveis aos variados freqüentadores de casas noturnas, boates. Contudo, pouca atenção se dá a estes artistas, como se suas vozes não tivessem um dono. O que interessa ao diretor é o trabalhador que existe por trás desse artista, que a cada noite, apagadas as luzes, terminada a festa, pega um ônibus para voltar para casa. E a casa fica longe.
A cantora excepcional que é Áurea Martins dá vida à personagem criada por Zeca, mas a verdade que a artista carrega em si transborda da tela, fazendo com que esqueçamos se ao que estamos assistindo é documentário ou ficção. Áurea é econômica nas palavras, nos gestos, na interpretação das músicas. Sua voz – tal como a de Nana Caymmi – não precisa de alarde para chegar ao mais profundo de nossas almas. E Zeca Ferreira, dosando palavras, música e silêncios, captou com extrema competência e delicadeza toda essa simplicidade. E beleza.

PS: Agradeço ao amigo Clementino Jr, do Cineclube Atlântico Negro, a oportunidade de assistir Áurea e de participar da conversa com Zeca e a própria.

domingo, 10 de abril de 2011

PARTINDO DE REALENGO, UMA REFLEXÃO SOBRE INTOLERÂNCIA, EXCLUSÃO E AFETO


O assunto dominante nas páginas dos jornais, desde a última quinta-feira, é a Escola Tasso da Silveira, de Realengo. E não podia deixar de ser, embora a brutalidade e improbabilidade do fato não justifiquem o tratamento da mídia, em algumas matérias. Impossível descartar ou minimizar o emocional, mas o excesso (pela extensão e repetição) de matérias focadas no aspecto, digamos, técnico do atentado e de cenas de pânico e dor deveria ser contrabalançado por alguma reflexão.


Bem, este modesto blog não pretende reinventar a roda, nem ser analista social, político ou econômico, mas apenas juntar algumas peças que possam nos instigar a pensar. E compartilhar pensamentos e sentimentos. Recortes de uma edição do jornal O Globo, do dia 9/4, a mim parecem formar um mosaico de onde podemos, se não tirar conclusões definitivas, mas alargar o olhar para o mundo que nos cerca, sejam suas fronteiras Realengo ou a Ásia.


Na referida edição, Cacá Diegues, cineasta veterano, fala do horror que a diferença (que pode ser traduzida pelo “desconhecido”, e como tal, uma “ameaça”) historicamente provoca nos seres humanos e das nefastas consequências dessa intolerância frente à diversidade, seja ela de que origem for. Diz ele: “O que é evidente, a partir das poucas pistas deixadas, é que a tragédia na escola de Realengo está repleta, por todos os lados, de graves e clássicos sintomas de intolerância, uma incapacidade de suportar a diferença, um horror dela que nos impede de viver em paz com o outro”. E levanta a questão de que o jovem assassino poderia carregar em si mesmo a dualidade do “eu” e do “outro”, o que é excluído e o que exclui, por se julgar um ser “puro”. Como cineasta, vai buscar no baú o filme "E.T." e sua bela lição de aceitação do diferente.


Aí vamos para a Seção Internacional e os títulos parecem fazer coro a Cacá: “Síria reprime protestos e mata pelo menos 27”, “Crianças de Misurata na linha de tiro”; “Iêmen; centenas de feridos em Taiz”, “Costa do Marfim: ONU acha 100 corpos”. O respiro vem de uma nota, no canto esquerdo, meio escondida, que informa que “Espanha recebe o último grupo de cubanos”, referindo-se a dissidentes ex-presos políticos que deixam a ilha caribenha.


Zuenir Ventura, no mesmo dia 9/4, desfia sua longa lista de coisas a se evitar nesses tempos. Uma lista que vai da Linha Vermelha aos gatos. E para concluir diz que está “evitando evitar todas essas coisas para não acabar paranóico”. A tragédia de Realengo o pega de surpresa – como a todos nós – e a para essa ele ainda não tem um lugar na sua lista, pergunta apenas, especulando: “Será um efeito perverso da globalização?”


Enquanto isso, na Seção Cidade, o Secretário Municipal de Assistência Social (SMAS) garante que vai avançar no cuidado com – a meu ver - um dos problemas mais sérios de nossa cidade: os moradores de rua. Aqui debaixo de minha janela, no Flamengo, zona sul do Rio, minha visão diária é a de dois homens (às vezes há mais gente) dormindo em colchões sabe Deus conseguidos onde, urinando, defecando, vivendo como animais abandonados em meio à imundície, adquirindo e espalhando doenças. Serão doentes mentais? Desmemoriados? Depressivos, rejeitados pelas famílias? Ou simplesmente vagabundos avessos ao trabalho?


Confesso que nunca tive coragem de me aproximar e perguntar de onde vêm, por que estão nas ruas, se têm família. Só consigo me indignar (o que, sei, é o mais fácil) por eles - por estarem excluídos da sociedade - e por mim, por ter de vê-los a cada manhã e ter de desviar de suas “camas”, suas tralhas e suas fezes quando caminho pelas calçadas. Exerço a cidadania, procurando acertar na hora do voto e ligando para órgãos ditos competentes de quando em vez.


Bem, voltando à SMAS, o Secretário Rodrigo Bethlem diz que a verba para o acolhimento (e essa deveria ser a verdadeira ação: acolher e não apenas recolher, como se faz com o lixo, que aliás já até tem merecido tratamento melhor, pois é em parte reciclado) será aumentada de R$ 15 milhões em 2010 para R$ 23 milhões e que haverá um reforço de educadores e assistentes sociais. Olhando para as ruas da “Cidade Maravilhosa” esburacadas, sujas e repletas de mendigos, fica difícil imaginar como foi usada a verba até agora. Aumentá-la simplesmente não vai resolver esse quadro dramático que vemos todos os dias nas nossas ruas, sempre piorado.


Enfim, no mesmo sábado, o Globo noticia, também numa pequena coluna, num canto de página, que o Governo anulou mais de 40 mil benefícios do Bolsa Família, por não terem sido cumpridos, pelos beneficiários, os compromissos com a educação e saúde (devem frequentar a escola e ir a postos de saúde). Há falhas no acompanhamento familiar que cabe aos municípios. Ou seja, um elo da cadeia que, apesar de seus críticos (bem intencionados ou não), provocou mudanças significativas no panorama social do país. A fiscalização oficial é imprescindível, a participação popular também.


Intolerância casa-se com exclusão, tal como corrupção e desvio de verbas públicas casam-se com vaidade e desejo de poder. O “outro” é cada vez mais o “outro” e mesmo os que consideramos iguais cada vez estão distantes, ligados a nós por fibras óticas e aparatos tecnológicos. Encontro, vinculação, afeto, confidências, desabafos, se esvaem em meio a conversas superficiais, e muitas, muitas imagens. Há uma avalanche de informação que desaba sobre nós a cada dia, mas o que fica, o que apreendemos, o que compartilhamos verdadeiramente? O turbilhão, contraditoriamente, quer passar cada vez mais depressa, mas instiga o desejo de permanência, de fama, de visibilidade, dos “15 minutos de fama”.


Para fechar, um alento aos corações que, como o meu, se angustiavam com a ideia de serem os adolescentes mortos enterrados ou cremados com seus órgãos preciosos, capazes de renascer em outros corpos: várias famílias, do fundo de seu espanto e sua dor, abriram generosamente sua alma e permitiram que órgãos de seus filhos fossem usados em transplantes salvadores. Pena que essa noticia não tenha tido na mídia o destaque que merece. Como não têm os filmes independentes, como aquele cuja imagem ilustra este texto.


FOTO: Imagem de divulgação do documentário "Estação Realengo", de Carlos Maia.