segunda-feira, 1 de março de 2010

Sala Escura - ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA

ENXERGANDO ATRAVÉS DAS TRAGÉDIAS

Terremoto no Haiti, terremoto no Chile. Como cenas de um filme, as imagens da destruição vão passando sob nossos olhos, na TV, nos jornais, na internet. Fotografias, vídeos, relatos por telefone.

Somos levados a pensar que somos eternos, senão, para que consumir tudo que a publicidade nos empurra diariamente? Para que ter mais pares de sapatos do que dias no mês? Para que trocar de carro ou celular periodicamente? Para que assumir dívidas infindáveis, pagar juros altíssimos, para ter, e ter, e ter? Para que passar horas na academia, muito além do necessário para ter um corpo saudável e atraente, a fim de desenvolver bíceps, enrijecer coxas e glúteos a ponto do corpo tornar-se um amontoado de músculos que saltam sob a pele e transformam pessoas em bonecos produzidos em série?

Um tremor de alguns segundos ou minutos e tudo se esvai. Perde-se o chão, literalmente. Como bem disse a escritora Ana Maria Machado em entrevista a um jornal da TV Globo (ela está no Chile para um congresso de literatura infanto-juvenil), a referência que temos de segurança é a terra firme. Quando esta terra deixa de ser firme é a total sensação de nossa pequenez, nos sentimos um nada.

As pessoas hoje não se olham, nos atropelam nas calçadas, como se fossemos invisíveis. Há uma pressa, sabe-se lá para chegar aonde. E quando acontece uma catástrofe assim? Como elas reagirão? Há os que se aproveitam do caos para pilhar, saquear, estuprar. Mas certamente há os que se compreendem que terão sim de olhar para quem está a seu lado. Provavelmente falarão com pessoas a quem jamais dirigiriam uma palavra, um bom-dia... terão de dar as mãos, de se organizar e solidarizar para resistir e reconstruir suas casas, seu bairro, sua cidade, seu país. Suas vidas.

O filme Ensaio sobre a Cegueira, adaptação do livro do português Nobel de Literatura José Saramago, escrito em 1995, traz estas reflexões. Um filme sobre catástrofe, que não enfoca prédios ruindo, tsunamis, mas as transformações pelas quais passam pessoas que perdem subitamente seu referencial, seu chão. Uma narrativa que causa desconforto – o próprio Saramago disse que sofreu ao escrever a obra – ao expor uma sociedade com suas misérias e grandezas, com personagens que vêm na tragédia uma chance de dominar, seja pela força bruta seja pelo autoritarismo e desinformação, e outras que descobrem valores como confiança, humildade, solidariedade, há tempos esquecidos. Não por acaso não há indicação – seja por paisagens ou língua escrita – de onde se passa a trama. Um painel da história da Humanidade, onde através dos séculos a tecnologia parece apenas mudar o cenário de batalhas eternas, dentro e fora de nós.

Dica: Não deixe de ver, no DVD, os Extras sobre a preparação dos atores. É outro filme, que nos faz – sem trocadilho – enxergar melhor o filme propriamente. Este tem seus altos e baixos e poderia ser encurtado nuns 20 minutos sem prejuízo da qualidade estética e dramatúrgica e do recado que pretende passar. Atenção também para a música do grupo mineiro UAKTI.

ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA (Blindness) – 2008 – 120min
Diretor: Fernando Meirelles
Roteiro: Don Mckellar
Estúdios: O2 Filmes / Rhombus Media / Bee Vine Pictures
Site oficial: http://www.ensaiosobreacegueirafilme.com.br/