domingo, 24 de maio de 2009

“A VOCAÇÃO HUMANA É CRIAR”





O convite do Espaço Utopya/Tempo Glauber dizia: Workshop Dramaturgia e Interpretação / Cinema e Televisão, com Domingos Oliveira. Propaganda enganosa! Durante cerca de 60 minutos, Domingos – que abriu a conversa dizendo não saber sobre o que falar – deu uma aula não exatamente de dramaturgia e interpretação, mas daquela matéria que está por trás destas atividades artísticas. O mestre falou pouco de “técnicas”, mas muito de “alma”.

Contando passagens vividas ao longo de seus 72 anos, Domingos contou casos, falou da dor e delícia de ser ator, autor e diretor. Na casa de Glauber Rocha e na presença da mãe do cineasta baiano, contou que certa vez foi abordado por Glauber que, sabendo que Domingos trabalhava num novo filme, lhe perguntou: “Qual o escândalo de seu filme?”. Estava aí o tom daquele bate-papo na noite da última sexta-feira.

A trajetória de Domingos é marcada pela coerência de um artista que se mantém fiel (sem ficar na mesmice) a seus sonhos. Seu primeiro filme Todas as Mulheres do Mundo, realizado num sistema de cooperativa dos próprios atores, foi um sucesso nunca mais repetido: rendeu 11 vezes o que foi investido. O seguinte, Edu Coração de Ouro, também se pagou, mas daí pra frente ele só colheu prejuízos, como aconteceu com Feminices e Carreiras. Angustiado por aquele peso, um dia, reuniu toda a papelada que representava suas dívidas, colocou numa mala e jogou no mar. Mas, ao longo do tempo, pagou tudo, garante ele.

Sobre suas obras não exibidas, Domingos revela que, como, literalmente, não pode viver sem criar, o único jeito é trabalhar continuamente. E alerta: um ator certa vez se afastou do teatro, e o teatro também se afastou dele. Entende que todo mundo precisa ganhar dinheiro, mas também precisa fazer o que quer. “A vocação humana é criar”, declara Domingos, que acredita que o mundo só será um lugar feliz quando todo homem for artista

ARTE
E o que é a Arte? Para ele, é o mistério, o que não pode ser dito, explicado e é por meio dela que a vida nos é ensinada: aprende-se o que é um girassol ao ver um quadro de Van Gogh e para saber o que é o sertão, basta ver os filmes de Glauber. “Arte que não faz crescer sua alma, não é arte”. Um jeito diferente de falar do “escândalo” professado por Glauber.

Fã das técnicas do russo Stanislavski, Domingos diz que representar é o jogo da imaginação, que é preciso ser uma pessoa que você não é. Para ele, o cinema é mais próximo do realismo; no teatro o ator precisa mais do que técnica. “Tenho muito respeito pelos atores, embora sejam uns chatos” completa sorrindo, lembrando que para ser escritor, foi preciso ser também ator e diretor.

FINANCIAMENTO – FILMES BOAA
Não tem jeito, o orçamento influencia na estética de um filme, não dá pra fazer cinema sem dinheiro. No teatro ainda dá para adaptar, reduzindo elenco, cenários. Mas, Domingos acredita que o filme bom é o filme barato, onde se pode trabalhar de forma independente, por isso lançou em 2005 o manifesto do filme BOAA – Baixo Orçamento e Alto Astral. Dá como exemplo seu filme Juventude, que foi unanimemente elogiado e premiado em festivais, custou 800 mil reais, teve 18 mil espectadores. Mas... o filme “global” Se eu Fosse Você 2, vendeu 6 milhões de ingressos. “Se o filme não tem um grande orçamento e atores da Globo, fica no gueto do Estação”, diz ele, referindo-se ao circuito que acolhe os filmes de arte.

No momento em que fervilham as discussões sobre a Lei Rouanet, Domingos prega que o destino do cinema brasileiro deve pertencer ao governo brasileiro, não pode ser terceirizado. E que só deveriam ser feitos filmes bons, especialmente quando se tem em mente o mercado externo, onde só tem vez o filme de arte.

Domingos já desistiu da bandeira das obras prontas: em vez de financiar obras a serem feitas (projetos), o governo deveria pagar pelas obras já realizadas. Em vários países o sistema é esse, inclusive na Argentina – onde o cinema vai bem, obrigado. Na terra dos hermanos, o autor recebe o que gastou e mais uma quantia para finalizar o trabalho. Aqui, filme pronto não pode concorrer para financiamento algum, lamenta o artista.

PROCESSO CRIATIVO - A Terra das Peças e Filmes Prontos
“Roteiro é a forma mais complexa de literatura, só autor/diretor entende”, diz ele. Famoso por mudar diariamente seus textos, levando seus atores à beira da loucura (“mas eles acabam compreendendo e respeitando”), Domingos acredita que a obra deve ser assim, reconstruída a cada dia. O diretor não pode planejar. Planeja apenas a intenção. Ele acredita que qualquer ator lê bem um texto. Se o resultado não é bom, é porque o texto está ruim. Mas não se trata de um processo de decorar, mas de entender o que está escrito.

Domingos trabalha diariamente, de manhã à noite; é muito produtivo. Atualmente tem duas peças em cartaz: Confronto e Apocalipse segundo Domingos Oliveira. Sobre esta produtividade, revela um segredo, uma lei que segue religiosamente: terminar tudo que começa. E produz muito também porque acredita que há coisas – inclusive de sua vida - que é preciso contar. Como na peça Confronto onde, segundo ele, há a necessidade de compartilhar o que diz Luiz Eduardo Soares (autor de A Elite da Tropa): a violência tem solução.

Dá a “receita” de seu processo criativo: escreve tudo que vem à mente, escreve com as mãos, não com a razão. Ele chama estes escritos de “material indomável”. Depois, tenta organizar. Se tiver conhecimentos técnicos, ajuda, mas não resolve, avisa. Num determinado momento, aquilo vira algo racional e fica muito ruim. “O escritor vira uma arrumadeira”, diz ele. Mas é preciso insistir, até o instante em que os personagens começam a adquirir vida própria e a traçar seu próprio roteiro. Tudo vem da “Terra das Peças e Filmes Prontos”, onde todas as obras estão, aguardando quem as resgate, afirma ele, com a maior convicção.

Para fazer Do fundo do lago escuro, escrito após ser dispensado da TV, cercou-se de fotos da infância e iniciou uma viagem por todos os detalhes ali impressos. A tarefa foi facilitada porque tinha ainda, por contrato, três meses de salário garantidos. Pôde assim mergulhar naquele universo e chegou ao ponto de ouvir vozes, tal o alheamento do mundo que o cercava. “Teatro e cinema são atividades irracionais, vêm do inconsciente”, afirma ele.

Atualmente, Domingos vem tentando se concentrar num trabalho só, para não haver dispersão. Seu próximo filme, Inseparáveis,, é uma continuação da história do casal de Separações. No teatro, pretende remontar Do fundo do Lago Escuro. A peça já teve outras montagens, mas nunca dirigidas por ele, que sempre teve dificuldade de encontrar atores que pudessem representar seus pais. Agora, está definido: Priscila Rosenbaum fará a mãe (já que hoje tem a idade dela, na peça) e ele, Domingos, fará a avó.


BLOG e TV
Espertamente, Domingos criou em seu blog duas partes: atualidades (onde fala do que acontece) e memória (onde fala do que já foi). Estas duas partes vão se encontrar, em algum momento e aí, diz ele, “terei o rascunho de minha autobiografia”. O blog traz também o que ele chama de “legado”: idéias que concebeu, mas, segundo ele, não terá tempo para desenvolver.

Falando de seu programa Swing (canal Brasil), que estreou em abril, lamenta que só casais que estão bem é que dão entrevista, mas, por outro lado, diz que “é bom ver o amor nos olhos deles”. O programa tem um formato especial: ele entrevista a mulher e Priscila Rosenbaum (sua mulher) entrevista o homem; depois eles trocam e, ao final, conversam os quatro. O formato final vai ao ar com 25 minutos de duração.

DEUS

Ateu, este engenheiro especializado em eletricidade teórica (único do Brasil), lamenta não acreditar que possa haver algo novo após a morte (“o que vier já estou no lucro”), mas fala em Deus várias vezes, inclusive ao citar Dostoievski, por quem é apaixonado: “Deus escreve pelas mãos dele”, diz. E evoca uma frase de Goethe: "Se eu não tivesse o mundo dentro de mim ficaria cego quando abrisse os olhos”. Finalmente, define: “Deus é uma ideia poética”.

Domingos Oliveira é assim: guarda dentro dele a sabedoria de seus 72 anos e toda a paixão e coragem que normalmente se atribui somente à juventude. Aliás, JUVENTUDE... isso já é uma outra postagem....

6 comentários:

Anônimo disse...

Bom artigo!
Só não concordei quando você falou de propaganda enganosa.
Escrever tem tudo haver com alma.
O tema foi mais profundo do que o proposto. Ele falou o que é ser um verdadeiro artista.
abs

Pedro Anisio disse...

Gostei do artigo. O BOAA é a saída. Lembrei dos saudosos Robero Pires, Sganzerla e Afonso Braza. De Bressane, André Luiz de Oliveira e Andrea Tonacci, que entre outros malucos beleza, seguram a onda da utopya da linguam autoral enquanto a tal indústria cinematográfica cospe mediocridade.
Tereza, muito obrigado por nos proporciona essas reflexões.
Pedro Anisio

Tecelã disse...

Caro Anônimo, a propaganda enganosa foi uma brincadeira, um traço de humor. O texto mostra o quanto o encontro foi mais do que o anunciado.
Ou seja, fomos generosamente "enganados".
Pena que não tenho como identificá-lo, mas segue meu abraço e obrigada pela visita ao blog.

Tecelã disse...

Valeu, Pedro Anísio
estou visitando seu blog.
abç.

Clementino Junior disse...

Muito legal!
Quero manter contato e trocar figurinhas contigo.
E quando puder apareça lá no Cineclube da ABDeC-RJ também (últimos sábados do mês).
Beijos
Clementino Junior
ABDeC-RJ

Tecelã disse...

Que prazer receber sua visita, Clementino!
Já tem mesmo um tempo que não vou ao cineclube da ABDeC-RJ, por conta de outros compromissos, mas em breve aparecerei por lá, gosto muito das sessões.

E ontem, como foi o lançamento do DOC-TV? Não deu pra eu ir.
grande abraço.