quinta-feira, 2 de outubro de 2008

A JUSTIÇA QUE NÓS QUEREMOS - II

Fora da Lei, Abaixo da Vida

O Des. Antonio Eduardo Duarte abriu este painel afirmando que o Tribunal de Justiça (TJ) mudou nos últimos dez anos; hoje é mais social, sem fugir à Lei. Uma surpresa promissora para quem, como eu, não conhecia o trabalho da Incubadora de Projetos para Egressos, foi a exposição de Ronaldo Monteiro, responsável pela instituição. Ele contou um pouco de sua própria história – ele, também, um egresso do sistema penitenciário – e da Incubadora. Falou da experiência de entrar no TJ sem algemas. Ronaldo ingressou no Presídio Ary Franco em 1991, quando Julita Lemgruber era Diretora do Desipe. Foi seqüestrador e envolveu-se com tráfico internacional de drogas. Hoje lidera uma organização onde os próprios egressos participam na tarefa de ajudar os que chegam e também os familiares de apenados. Segundo Ronaldo, há 430 mil familiares de presos no Brasil. Ele entende que o preso não é para ser ressocializado, já que na verdade nunca foi socializado.

Ronaldo enfatizou que o Governo não tem de ser “bonzinho”, tem apenas de cumprir sua parte, já que todos têm o seu papel. Para ele, “o Estado tem de abrir as portas para as ONGs”. E deu como exemplo o Presídio Helio Gomes (complexo da Frei Caneca) que possui uma escola para 1.200 homens, com apoio dos Governos Estadual e Federal.

O depoimento seguinte foi o de uma mãe que viu seu filho sofrer os maus-tratos comuns nas instituições para jovens e adolescentes, no caso dela, o Santo Expedito. Mônica Cunha lidera o Movimento pela Garantia dos Direitos dos Adolescentes Internos (Moleque). Ela percebeu que tinha de fazer algo ao ouvir as mães dos outros internos dizerem a seus filhos que os espancamentos que sofriam eram conseqüência de seus próprios atos. A indignação a levou a criar o Movimento até porque, se a principio sua preocupação era apenas por seu filho, sentiu depois todos aqueles meninos precisavam de ajuda.

Carlos Nicodemos, do Projeto Legal, observou que se o encontro fosse sobre direito dos consumidores, o auditório – parcialmente vazio - estaria lotado. Criticou a atual política de segurança higienista e disse que está entrando com ação contra as operações Copabacana e Barrabacana. Tal como em 2004, na operação Rio Turismo Seguro, Nicodemos denunciou que a abordagem é feita por policiais civis ou militares, os jovens recolhidos sem a atuação dos Conselhos. Ele considera que os Conselhos Tutelares não funcionam porque estão impregnados pela doutrina anterior. Deveria haver participação popular na decisão sobre a criança.

Num breve histórico, ele enumerou a evolução da lei aplicada aos infratores menores de idade, nos últimos dois séculos, desde 1927, quando se tinha a figura do “menor”, passando por 1979 com o Código de Menores, até 1990, com o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). O ECA trouxe a desjudicialização da política de atendimento. Entretanto, Nicodemos considera que a passagem jurídica foi feita, mas não a passagem política e que o sistema sócio-educativo é um “corpo sem alma”.

Eu tinha grande expectativa pela fala da palestrante que veio a seguir. Tomara conhecimento de suas idéias há mais de 20 anos, quando li seu livro “Cemitério dos Vivos”, um relato contundente sobre as presas do Talavera Bruce. Julita Lemgruber é hoje pesquisadora do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania da Universidade Cândido Mendes (CESEC /UCAM). E já iniciou sua fala mostrando sua disposição em ir contra a corrente. Após consultar a platéia, disse: “Temos no Estado do Rio 780 juízes, destes, cerca de 300 na área criminal, mais uns 180 desembargadores. Na platéia apenas 20 levantaram a mão, ou seja, na Casa dos Juízes, um auditório tão grande e tão poucos juízes presentes num encontro que discute a produção dos juízes criminais”.

E a produção é grande. A população carcerária, em 1995, era de 93 presidiários para 100 mil habitantes; em 2007 subiu para 222 por 100 mil habitantes. Muitos presídios são construídos, mas continua havendo déficit vagas. Estatísticas recentes mostram que 439.737 presos cumprem pena (dados de junho/2008), sendo 86% sistema penitenciário e 14% em delegacias. Cumprindo penas alternativas, temos neste ano, 498.729 pessoas. Julita destacou que as penas alternativas não estando substituindo as prisões, mas aumentando o numero de pessoas sob controle do estado.

A pesquisadora contou que durante um seminário em Cartagena (Colômbia), um representante brasileiro, citando dados do DEPEN, afirmou que apenas 150 mil das penas e medidas alternativas seriam necessárias e que 54.000 presos do sistema deveriam estar cumprindo penas alternativas. Inquiriu o palestrante sobre os motivos desta informação não ser divulgada aqui, e recebeu críticas por esta atitude.

Mas Julita acredita que é preciso falar a verdade, sempre, e exibiu um retrato da situação carcerária no país. Segundo a Lei de Execuções Penais, o preso sem 1o grau tem de estudar na cadeia, mas só 16% estudam e 8% são analfabetos. O preso deveria também trabalhar, mas apenas 17% trabalham (dados do CESEC e do INFOPEN).

O encerramento ficou a cargo do advogado Modesto da Silveira, ex-Parlamentar, autor da Lei da Anistia. E ele abriu seu coração, confessou que chorou durante os painéis e enfatizou que o conhecimento que adquirimos não deve permanecer apenas como bagagem intelectual, mas deve ser um propulsor para a ação. E, referindo-se ao Parlamento, perguntou: “Cadê as mulheres, os negros, os pobres? Este Parlamento não representa o povo brasileiro. Ao contrário, estão lá os grandes empresários, latifundiários, banqueiros ou seus representantes. É assim em todo o mundo capitalista”. E lembrou que quem domina a mídia, domina as idéias.

E Modesto, um mineiro que foi lavrador, sem-terra, operário, continuou seu discurso inspirado: “Seminário vem de sêmen, semente, semear. Espero ter frutos para colher no próximo seminário. Mas isso só vai acontecer se as lideranças se movimentarem. É possível mudar. Basta um juiz representativo – como os dessa associação – para promover mudanças”, disse ele.

Fica mais fácil acreditar que é possível a JUSTIÇA QUE NÓS QUEREMOS quando há informação de qualidade, honesta, precisa, clara. Será que aquelas diferenças de opinião, de que eu falava lá no começo deste artigo, que se revelam nas pesquisas – tão precárias – sobre maioridade penal, pena de morte, não seriam menores se houvesse mais encontros como este, com mais divulgação e maior participação da sociedade?

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