quinta-feira, 30 de outubro de 2008

A ESPINHA E O PROFESSOR - UM ENCONTRO NA SERRA DO MAR






Às vezes a gente topa com uma pedra. E se machuca. Mas, algumas vezes esta pedra é preciosa e, em vez de nos machucar, nos enriquece. Deodato Rivera é assim. Uma teia de acontecimentos nos levou a este homem especial: o curso de JPPS do professor Evandro na UFRJ, a celebração do ECA 18 anos, George, Dudu... acabamos subindo a serra, no último sábado, rumo a Itaipava, onde Deodato, com a cumplicidade de sua regina Regina, constrói em sua oficina as engrenagens de uma máquina chamada REVOLIÇÃO.

Há tanto vigor sob os cabelos de nuvem desse homem! Nuvens que chovem sabedoria, generosidade. Chuva amorativa que lava o ranço da estagnação, que nutre o solo de nossas mentes, que faz crescer sementes de dádiva. E há tanta delicadeza e, sobretudo, humildade! Deodato semeia, revolve a terra, aduba e, discretamente, se recolhe, vendo crescer o que plantou ou ajudou a desabrochar.

Assim, acolhidos pelas montanhas, que Deodato faz questão de chamar pelo nome - Serra do Mar -, observados pelas árvores de diferentes verdes e formas, rodeados por gatos e quatis (estes não vimos, mas Deodato os conhece), embalados pelo cantar dos pássaros, envolvidos por flores e brisa – o prana -, fomos seduzidos pela magia profunda da natureza.

Cercados por uma atmosfera de serenidade, adornada por diferentes versões da Bandeira Nacional, partimos em busca do Encontro. Encontro de células – como as que nos geraram-, de gestos, de vozes, de olhares, de mãos, de energias. Encontro é o que Deodato celebra e ele nos convida a compartilhar deste banquete, onde a amorosidade é servida em bandejas tecidas de palavras.

Corações e mentes desarmados, mergulhamos nas histórias uns dos outros: da menina gordinha que aprendeu a se gostar; do jovem profissional de Educação Física que, graças às palavras de um antigo professor, aprendeu a ver nos seus alunos algo além de músculos; do tragicômico namoro que aconteceu graças a uma espinha de bacalhau; refletimos sobre os ressentimentos guardados que paralisam a circulação sanguínea e geram doenças; nos emocionamos com a emoção de um homem simples que, guiando o ônibus, nos conduziu até aquele lugar de encantamento...

Assim transcorreram horas cujo tamanho não poderia ser medido por minutos, pois transcendem a noção de tempo dos relógios. Deodato nos falou de fósforos molhados, incapazes de acender as velas que estão dormindo, à espera de alguém que desperte sua luz. Sejamos todos nós – Felipes, Evandros, Tatianas, Déboras, Therezas, Júlios... - fósforos bons, prontos para acender velas que iluminem a escuridão de nossos próprios caminhos e os de nossos companheiros de jornada.

domingo, 26 de outubro de 2008

ESPORTE FINO: CENA DE BOTEQUIM



Personagens: Rubro-Negro e Vascaíno.
Cenário: Botequim qualquer da cidade, manhã de um dia qualquer.

Rubro-Negro (RN), sentado no botequim, lê as páginas esportivas de um jornal popular onde a notícia principal é um certo baixinho que, acusado de doping, alega estar usando remédio para queda de cabelo. Vascaíno (V) chega e entra no bar.

RN – Pô, aí! Pegaram o cara no exame antidoping.

V – Nada a ver, cara! Ele só tava usando um remédio pra crescer cabelo.

RN - Crescer, não! Pra parar de cair! Baixinho e careca, não dá, né?

V - Ele tá certo, cabelo é importante, ainda mais pro cara que é atleta. Você não conhece aquela história do baixinho que lutou com um gigante e venceu? A força dele tava no cabelo.

RN - Como é que é? Tá falando do Davi e Golias?

V - É, esse aí mesmo!

RN - Não seja burro, cara! Esse baixinho derrubou o gigante com uma pedrada. O do cabelo era outro, o Sansão.

V - Que Sansão, cara! Tu não manja nada mesmo dessas história de Bíblia! Sansão foi o do Mar Morto.

RN - Mar Morto?!

V - É... o mar se abriu pra ele passar com a galera dele.

RN - Não, não! Não era o Mar Morto, era o Mar Vermelho!

V - Mar Vermelho é outra parada. Você tá confundindo tudo. O do Mar Vermelho era o Vasco da Gama, que queria encontrar as índias e teve uma calmaria que empurrou ele pra lá, onde tinha as índias peladas.

RN - Vasco da Gama?

V - É, Vasco da Gama, sim! Por isso a cruz de malta do Vascão é vermelha.

RN - Ahannn...Hummm... índias peladas... então deve ser por isso que os caras são chegados numas peladas na praia...

V - Tô falando sério, cara!

RN - E o Mar Morto, qual é a dele?

V - É um mar que não tem peixe.

RN - Ah, nisso aí eu concordo contigo, peixe!

ANCELMO GÓIS E O GENERAL



Descobri na última terça-feira, dia 21, algumas coisas bem interessantes. O Exército mantém um Centro de Estudos de Pessoal (CEP) no Forte Duque de Caxias, no Leme. Eu não sabia disso. O CEP (www.ensino.eb.br) é uma escola dedicada às ciências humanas e promoveu, durante a semana que acabou, um Seminário de Comunicação Social. Ponto pro pessoal de verde-oliva. Neste tempo de celebração das disciplinas tecnológicas, de educação-adestramento (falei disso no post do dia 2/10, citando o escritor Alcione Araújo) é bom saber que as da área de Humanas também têm seu espaço.

O primeiro palestrante convidado foi o veterano jornalista Ancelmo Góis. Mais um ponto pros organizadores. Como o evento é aberto à comunidade não-fardada, ou seja, gente como eu, lá fui, interessada tanto no que o Ancelmo ia dizer, como em conhecer a organização militar (como eles chamam os quartéis) plantada naquele belíssimo recanto do Rio de Janeiro.

Pois o saldo foi mais positivo do que isso. Foi muito bom ouvir o Ancelmo, à vontade, sem hipocrisia, dizer, por exemplo, que não é imparcial, nem na profissão, nem na vida pessoal. Para ele, ser imparcial é tarefa impossível, pois o ser humano é feito de emoção e, assim, está sempre tomando partido, aqui e ali.

A princípio fiquei meio decepcionada com essa afirmação, afinal me esforço para agir com imparcialidade. E a regra é dizer que a imprensa deve ser imparcial. Mas o calejado jornalista está muito certo. Afinal, o problema não é tomar partido – se vemos uma injustiça não podemos nos omitir –, é ser desonesto. Tomar partido não pressupõe caluniar, confundir certo e errado, mentir, omitir, lançar falsas verdades, como se vê freqüentemente na mídia.

E Ancelmo Góis falou por boa parte da manhã sobre a imprensa e o direito de ampla defesa, sobre a tecnologia, o acesso das pessoas à informação, respondeu a perguntas, contou passagens de sua extensa carreira de jornalista. Sobre o direito de resposta, afirmou que “a imprensa não pede desculpas, xinga o sujeito na manchete e dá o espaço de resposta na seção de cartas”. E foi além: ao dizer que o Brasil é um país que não pede desculpas, incluiu aí, o Exército. E apontou a Justiça como base dos problemas com os quais o Brasil ainda convive. Como exemplo, citou a absolvição de Fernando Collor da acusação de improbidade administrativa.

A informalidade do sergipano, 40 anos de Rio de Janeiro, recorrendo a algumas inocentes expressões populares - que os mal-humorados poderiam chamar de palavras de baixo calão - deu um toque pitoresco àquele auditório, lotado de homens e mulheres fardados. Esta também uma surpresa para mim, na minha ignorância sobre as atividades do CEP: pensei encontrar lá apenas jovens universitários, já que vi o cartaz do Seminário na UFRJ. Até havia alguns, além de senhoras de cabelos brancos que, imagino, são freqüentadoras do Forte. Mas a maioria da platéia era composta pelos militares, do Rio, de outras cidades e até do exterior, inclusive dois bolivianos. Mais um ponto para o CEP.

Apesar do inevitável ritual, como o bater de continências, e de um tom mais formal na abertura e encerramento, o clima do encontro foi agradavelmente descontraído, especialmente graças ao General Sérgio Tavares Carneiro (Diretor de Pesquisa e Estudos de Pessoal), um jovem senhor sorridente (ou os generais são mais jovens do que sempre imaginei ou eu estou mesmo ficando velha...). Foi com franqueza e simpatia que ele contou como se aproximou de Ancelmo. O jornalista publicou uma nota de denúncia, sem checar, sobre uma suposta violação ao meio ambiente, numa unidade do Exército. Depois de algumas tentativas frustradas, o General conseguiu ardilosamente chegar ao famoso jornalista e a partir daí tudo se esclareceu. Um almoço, uma boa conversa e, mais tarde, o convite para a palestra.

Ancelmo contou que esteve preso por 30 dias durante o regime militar, mas admitiu que, desde então, aprendeu muito. E enfatizou a importância do Exército Brasileiro para a preservação ambiental, lembrando que é graças aos militares que algumas áreas verdes da cidade – como a Restinga de Marambaia e morros – resistem à devastação. Bonito ver a aproximação destes dois brasileiros de trajetórias tão distintas e amizade, talvez, improvável.

Saí do Forte Duque de Caxias para o dia azul, o mar de Copacabana luzindo ao sol, com a sensação de estar mais confiante na possibilidade de entendimento entre os seres humanos.

CUBA: BLOQUEIO CAUSA MAIS DANOS QUE FURACÕES


“Levamos a Pátria na mente e no coração, mas também nos atos”. Palavras do Cônsul Geral de Cuba, Carlos Trejo Sosa, no lançamento da campanha de ajuda humanitária àquele país, dia 10, no Rio de Janeiro. O embaixador declarou que os estragos causados pelos furacões Gustav e Ike foram imensos e aconteceram rapidamente, de uma única vez. Já os danos provocados pelo bloqueio econômico são cotidianos, as perdas são enormes.

Segundo Trejo Sosa, os 50 anos de bloqueio não esmoreceram a vontade do povo cubano e a comparou à espada Excalibur, que não se detém diante da rocha. Ele declarou que apesar dos estragos, Cuba não está à beira de um colapso quanto à questão sanitária, como vem sendo divulgado por uma campanha difamatória. E informou que o sistema energético já foi restabelecido e as escolas não pararam de funcionar; a produção agrícola vem se recuperando; não há um cubano que não tenha recebido assistência médica e pacientes de hemodiálise foram transferidos para que seu atendimento não fosse interrompido. Destacou o empenho dos repórteres que, em cima de árvores e casas, registraram a fúria dos ventos e do mar.

Zuleide Faria de Melo, Presidente da Associação Cultural José Martí, disse que a prova de que Cuba cuida bem de seus filhos é que o número de mortos (sete) foi muito inferior ao de outros países atingidos por furacões. O Cônsul lembrou também que em 1963 Cuba enviava, pela primeira vez, médicos para atuarem no exterior, no caso a Argélia. Naquela época, o país tinha apenas 3 mil médicos, mas a semente germinou e a solidariedade permanece, disse ele. Solidariedade que Cuba merece e precisa agora, para recuperar não apenas as construções, mas também o meio ambiente, que foi violentamente agredido, com a destruição de praias e de ecossistemas.

Oscar Niemeyer, o Presidente da Campanha, não pôde comparecer e enviou uma carta de apoio, destacando a coragem do povo cubano frente ao bloqueio norte-americano.

Para saber mais, visite o site da campanha (http://www.porcuba.com.br) e ouça uma linda canção de Silvio Rodríguez.

quarta-feira, 8 de outubro de 2008

A PENTEADEIRA DA VÓ SANTINHA


Alguém disse que avó é mãe com açúcar. O açúcar anda em baixa, tido como vilão de muitos males que assolam a sociedade moderna. Mas açúcar será sempre sinônimo de doçura e energia. Assim era a avó Balbina, Bina para todos que aprenderam que sua varanda estava sempre aberta para receber quem chegasse, para uma conversa ou um pedido de ajuda. Na última sexta-feira, vó Bina deixou sua casinha em Nova Iguaçu e foi para uma nova morada, para onde vão pessoas doces e diligentes em prestar solidariedade ao próximo (como a tia/avó Lavínia, do lado de cá da família, que também partiu há quase um ano). Ficou um vazio, uma saudade, mas especialmente o exemplo de uma pessoa especial. É em homenagem à Vó Bina, a avó paterna de minha filha Luana, que publico aqui este pequeno conto escrito em 2002:

A PENTEADEIRA DA VÓ SANTINHA possuía pequenas gavetas e o mistério que elas guardavam era para mim irresistível. Imaginava eu quantas preciosidades estariam ali escondidas, jóias de contos de fadas, pétalas de flores já secas pelo tempo, pequenas fotografias amareladas de homens sisudos em colarinhos altos, entre elas alguma talvez com uma dedicatória, palavras de amor.

Um dia, vó Santinha morreu. Disseram-me que ela havia ficado muito cansada e fora para o céu, dormir com vovô João e tio Augusto – esse, um tio que morrera antes mesmo de eu nascer e sobre quem se falava raramente, quase que em sussurros. Antes de qualquer sentimento de dor, de perda, veio-me à mente a penteadeira, com suas muitas gavetas, agora órfãs. Queria desesperadamente abrir aqueles pequenos compartimentos, verdadeiros cofres, para mim. Mas, como pedir isso a minha mãe, naquele momento?

Anos depois, já adulta, voltei àquela casa, onde viviam alguns parentes e, para mim, a memória de vó Santinha. Muitas coisas estavam diferentes, outros objetos, outra mobília. Lembrei-me de repente da velha penteadeira. Corri para o quarto. Nada! Onde estaria? Percorri os cômodos e enfim encontrei a arca do tesouro no quartinho de empregada. Empoeirada, esquecida. Delicadamente, quase como num ritual sagrado, abri aquelas pequenas gavetas e, com o coração saltitando e pérolas escorrendo dos olhos, encontrei a jóia mais rara: minha infância.

terça-feira, 7 de outubro de 2008

CUBA: “POR QUEM MERECE AMOR”



Com este lema será lançada na próxima sexta-feira, dia 10, uma campanha de solidariedade a Cuba. Atingida pelos furacões Gustav e Ike nos últimos meses, a ilha de Fidel, que tantos profissionais já enviou a outros países para prestar ajuda, pede socorro. O evento acontecerá na sede da Associação Brasileira de Imprensa (ABI), na Rua Araújo Porto Alegre, 71 – 9º andar, no Centro, às 18 horas.

A Associação Cultural José Martí e cubanos que vivem no Brasil estão se mobilizando, com o apoio do Sindipetro, para conseguir ajuda humanitária, diante dos enormes estragos causados pelas tormentas. As perdas são enormes: habitações, agricultura, rede elétrica. Este relato da professora Zuleide Faria de Melo, Presidente da Associação, dá uma dimensão do quadro desolador em se encontra o país: "A escola de Medicina construída na Ilha da Juventude, uma das mais modernas do mundo, com tecnologia de ponta, onde estudavam 300 brasileiros, foi totalmente destruída. Não sobrou um livro, uma telha, um computador. Morreram sete pessoas, o que para Cuba é muito. O país tem planos de evacuação para enfrentar intempéries como essa".

As contribuições poderão ser feitas por meio de depósitos bancários, doação de artigos de primeira necessidade, alimentos, medicamentos. Detalhes na página da internet: http://www.porcuba.com.br/index2/port/index2.html
Fonte: Agência Petroleira de Notícias (www.apn.org.br)

quinta-feira, 2 de outubro de 2008

A JUSTIÇA QUE NÓS QUEREMOS - I

Um nome aparentemente pretensioso para um evento, ainda que realizado sob a marca da Escola de Magistratura (EMERJ). Pretensioso porque o que nós, cidadãos, queremos, freqüentemente é ignorado por quem está no comando. Pretensioso também porque não há um consenso sobre o que queremos. Mas, é fundamental que, atendidos ou não em nossos desejos, continuemos exercendo nosso direito de querer, seja justiça ou outro artigo indispensável a uma sociedade democrática e solidária.

O Seminário A JUSTIÇA QUE NÓS QUEREMOS aconteceu no dia 15/08, no auditório da EMERJ, por iniciativa da Associação dos Juízes para a Democracia. Sim, há luz no fim do túnel; há juízes que estão empenhados nesta luta, entre eles os coordenadores do encontro: Siro Darlan de Oliveira e João Batista Damasceno.

Não pude ir aos debates da manhã. Lamentei perder as falas dos convidados, especialmente de Orlando Zaccone, Delegado de Polícia (autor do livro Acionistas do Nada). Mas os painéis da tarde valeram a ida ao Centro – outrora um passeio agradável, hoje, uma corrida de obstáculos. Mas isto é outra história, ou melhor, outro capítulo desta história.

Direito à Diferença:
Este foi o tema do primeiro painel da tarde. E as diferenças estavam bem representadas, na mesa e na platéia: anônimos, gente conhecida, gente com diploma, ou sem títulos, homossexuais, prostitutas, egressos do sistema penitenciário. Cláudio Nascimento, do Grupo Arco-Íris, contou as dificuldades que enfrentou por assumir sua homossexualidade. Ele enfatizou a necessidade de diferenciar sexo de sexualidade e de enxergar os gays dissociados da prática sexual, já que “não lidam com sexo 24 horas por dia”. Gabriela Silva Leite, Coordenadora do movimento DAVIDA, foi outra voz a pedir o respeito às diferenças.

O escritor Alcione Araújo lembrou que somos diferentes por natureza e o que o faz ‘diferente’ é o fato de ser escritor, numa sociedade que desprestigia a cultura. No entanto, “a arte desperta nossa subjetividade e permite acumular a experiência do outro em si e isto significa crescer”, disse ele. Segundo ele, vivemos um processo de esquizofrenia, com a educação afastada da cultura. Num país com 190 milhões de habitantes, 62 milhões de pessoas estão, de algum modo, ligadas à vida escolar. No entanto, um romance vende somente três mil exemplares, os teatros ocupam apenas 18% de sua lotação e os cinemas recebem cerca de 300 mil espectadores por ano.

Alcione, com a lucidez e clareza que o caracterizam, ressaltou que vivemos numa sociedade centrada na tecnologia; a educação hoje se volta apenas para a profissão, é um mero adestramento. “Após Hiroshima, o poder hegemônico passou a pertencer a quem detivesse a tecnologia e passaram a ser priorizadas as disciplinas tecnológicas, como física e matemática, rejeitando-se as do pensar e sentir”. Para ele, esta postura traduz uma percepção mesquinha da vida. E eu complemento: traduz e reproduz.

O escritor considera que está havendo um aniquilamento da capacidade de percepção humana. Por outro lado, quem aplica a lei terá maior capacidade de usá-la se seus horizontes forem mais amplos. “Espera-se que um juiz não seja um técnico, mas alguém capaz de perceber a subjetividade de cada indivíduo e contemplar as diferenças”, disse ele.

Margarida Pressburger, da Comissão de Direitos Humanos e Assistência Judiciária da OAB/RJ, concluiu o painel afirmando que “nossa casa legislativa é retrógrada e o Judiciário deve praticar a Justiça e não a legalidade”.

A JUSTIÇA QUE NÓS QUEREMOS - II

Fora da Lei, Abaixo da Vida

O Des. Antonio Eduardo Duarte abriu este painel afirmando que o Tribunal de Justiça (TJ) mudou nos últimos dez anos; hoje é mais social, sem fugir à Lei. Uma surpresa promissora para quem, como eu, não conhecia o trabalho da Incubadora de Projetos para Egressos, foi a exposição de Ronaldo Monteiro, responsável pela instituição. Ele contou um pouco de sua própria história – ele, também, um egresso do sistema penitenciário – e da Incubadora. Falou da experiência de entrar no TJ sem algemas. Ronaldo ingressou no Presídio Ary Franco em 1991, quando Julita Lemgruber era Diretora do Desipe. Foi seqüestrador e envolveu-se com tráfico internacional de drogas. Hoje lidera uma organização onde os próprios egressos participam na tarefa de ajudar os que chegam e também os familiares de apenados. Segundo Ronaldo, há 430 mil familiares de presos no Brasil. Ele entende que o preso não é para ser ressocializado, já que na verdade nunca foi socializado.

Ronaldo enfatizou que o Governo não tem de ser “bonzinho”, tem apenas de cumprir sua parte, já que todos têm o seu papel. Para ele, “o Estado tem de abrir as portas para as ONGs”. E deu como exemplo o Presídio Helio Gomes (complexo da Frei Caneca) que possui uma escola para 1.200 homens, com apoio dos Governos Estadual e Federal.

O depoimento seguinte foi o de uma mãe que viu seu filho sofrer os maus-tratos comuns nas instituições para jovens e adolescentes, no caso dela, o Santo Expedito. Mônica Cunha lidera o Movimento pela Garantia dos Direitos dos Adolescentes Internos (Moleque). Ela percebeu que tinha de fazer algo ao ouvir as mães dos outros internos dizerem a seus filhos que os espancamentos que sofriam eram conseqüência de seus próprios atos. A indignação a levou a criar o Movimento até porque, se a principio sua preocupação era apenas por seu filho, sentiu depois todos aqueles meninos precisavam de ajuda.

Carlos Nicodemos, do Projeto Legal, observou que se o encontro fosse sobre direito dos consumidores, o auditório – parcialmente vazio - estaria lotado. Criticou a atual política de segurança higienista e disse que está entrando com ação contra as operações Copabacana e Barrabacana. Tal como em 2004, na operação Rio Turismo Seguro, Nicodemos denunciou que a abordagem é feita por policiais civis ou militares, os jovens recolhidos sem a atuação dos Conselhos. Ele considera que os Conselhos Tutelares não funcionam porque estão impregnados pela doutrina anterior. Deveria haver participação popular na decisão sobre a criança.

Num breve histórico, ele enumerou a evolução da lei aplicada aos infratores menores de idade, nos últimos dois séculos, desde 1927, quando se tinha a figura do “menor”, passando por 1979 com o Código de Menores, até 1990, com o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). O ECA trouxe a desjudicialização da política de atendimento. Entretanto, Nicodemos considera que a passagem jurídica foi feita, mas não a passagem política e que o sistema sócio-educativo é um “corpo sem alma”.

Eu tinha grande expectativa pela fala da palestrante que veio a seguir. Tomara conhecimento de suas idéias há mais de 20 anos, quando li seu livro “Cemitério dos Vivos”, um relato contundente sobre as presas do Talavera Bruce. Julita Lemgruber é hoje pesquisadora do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania da Universidade Cândido Mendes (CESEC /UCAM). E já iniciou sua fala mostrando sua disposição em ir contra a corrente. Após consultar a platéia, disse: “Temos no Estado do Rio 780 juízes, destes, cerca de 300 na área criminal, mais uns 180 desembargadores. Na platéia apenas 20 levantaram a mão, ou seja, na Casa dos Juízes, um auditório tão grande e tão poucos juízes presentes num encontro que discute a produção dos juízes criminais”.

E a produção é grande. A população carcerária, em 1995, era de 93 presidiários para 100 mil habitantes; em 2007 subiu para 222 por 100 mil habitantes. Muitos presídios são construídos, mas continua havendo déficit vagas. Estatísticas recentes mostram que 439.737 presos cumprem pena (dados de junho/2008), sendo 86% sistema penitenciário e 14% em delegacias. Cumprindo penas alternativas, temos neste ano, 498.729 pessoas. Julita destacou que as penas alternativas não estando substituindo as prisões, mas aumentando o numero de pessoas sob controle do estado.

A pesquisadora contou que durante um seminário em Cartagena (Colômbia), um representante brasileiro, citando dados do DEPEN, afirmou que apenas 150 mil das penas e medidas alternativas seriam necessárias e que 54.000 presos do sistema deveriam estar cumprindo penas alternativas. Inquiriu o palestrante sobre os motivos desta informação não ser divulgada aqui, e recebeu críticas por esta atitude.

Mas Julita acredita que é preciso falar a verdade, sempre, e exibiu um retrato da situação carcerária no país. Segundo a Lei de Execuções Penais, o preso sem 1o grau tem de estudar na cadeia, mas só 16% estudam e 8% são analfabetos. O preso deveria também trabalhar, mas apenas 17% trabalham (dados do CESEC e do INFOPEN).

O encerramento ficou a cargo do advogado Modesto da Silveira, ex-Parlamentar, autor da Lei da Anistia. E ele abriu seu coração, confessou que chorou durante os painéis e enfatizou que o conhecimento que adquirimos não deve permanecer apenas como bagagem intelectual, mas deve ser um propulsor para a ação. E, referindo-se ao Parlamento, perguntou: “Cadê as mulheres, os negros, os pobres? Este Parlamento não representa o povo brasileiro. Ao contrário, estão lá os grandes empresários, latifundiários, banqueiros ou seus representantes. É assim em todo o mundo capitalista”. E lembrou que quem domina a mídia, domina as idéias.

E Modesto, um mineiro que foi lavrador, sem-terra, operário, continuou seu discurso inspirado: “Seminário vem de sêmen, semente, semear. Espero ter frutos para colher no próximo seminário. Mas isso só vai acontecer se as lideranças se movimentarem. É possível mudar. Basta um juiz representativo – como os dessa associação – para promover mudanças”, disse ele.

Fica mais fácil acreditar que é possível a JUSTIÇA QUE NÓS QUEREMOS quando há informação de qualidade, honesta, precisa, clara. Será que aquelas diferenças de opinião, de que eu falava lá no começo deste artigo, que se revelam nas pesquisas – tão precárias – sobre maioridade penal, pena de morte, não seriam menores se houvesse mais encontros como este, com mais divulgação e maior participação da sociedade?